Homilia para a celebração eucarística na Capela de Nossa Senhora do Bom Conselho – 28/02/2020
Irmãos e Irmãs no Senhor Jesus!
Esta semana abre o tempo litúrgico da quaresma, quarenta dias de preparação para a contemplação do tríduo pascal: a semana santa celebrando a instituição da eucaristia, a paixão, crucifixão, morte, ressurreição de Jesus Cristo. O tempo quaresmal é propício para a evolução espiritual, apoiada na Palavra de Deus, proposta, diariamente, para as celebrações comunitárias, reflexões pessoais, bem como pela Campanha da Fraternidade, sugerindo a sensibilização de opinião, visando a elaboração de políticas públicas coerentes e solidárias.
O tema para 2020: “Fraternidade e Vida: Dom e Compromisso”. Deus nos concede o dom da vida para o acolhermos e dele cuidarmos. Deus nos concede a filiação adotiva em seu Filho Jesus para nele nos tornarmos irmãos uns dos outros, exercendo plenamente a fraternidade. Cuidadores da própria vida, nos comprometemos a cuidar da vida do próximo e da natureza. O lema é tirado da parábola do bom samaritano narrada por Lucas: “Viu, sentiu compaixão e cuidou dele” (10, 33-34)
A parábola é uma narrativa maravilhosa. Um homem descia pelo caminho de Jerusalém para Jericó, caiu no meio de assaltantes que o despojam, espancam, foram-se deixando-o semimorto. Casualmente, um sacerdote e um levita atravessando o mesmo lugar viram-no e prosseguiram o caminho. Certo samaritano em viagem, porém, chegou junto dele, viu sentiu compaixão e cuidou dele, prestando-lhe primeiros socorros e conduziu-o a uma hospedaria, confiando-o ao hospedeiro, tendo assumido os encargos necessários. O samaritano tornou-se próximo do homem necessitado de cuidados. Pedagogicamente é indicado como modelo a ser imitado pelo próprio Jesus: “Vai, e também tu, faze o mesmo” (Lc 10, 37).
Receber a vida como dom, assumir o compromisso pela vida vulnerável. Tornar-se próximo do necessitado. Sensibilizar-se pelo sofrimento. Convite para revisão de atitudes, superação de indiferenças, cultivo de um coração capaz de se comover. Os profetas mencionavam coração de pedra impermeável aos apelos do Senhor e do próximo; dura cerviz resistente às inspirações do Espírito Divino. “Eu vos darei um coração novo e porei em vós um espírito novo; tirarei do vosso corpo o coração de pedra e vos darei um coração de carne. Infundirei em vós o meu Espírito e vos farei caminhar segundo as minhas leis, guardar e praticar os meus costumes”. (Ez 36, 26-27).
A liturgia da Palavra hoje nos oferece o exercício da missão do grande profeta Isaías. Chamado a gritar em alta voz, como uma trombeta, conclamando o povo para articular sua prática devocional como a expectativa do próprio Deus. Como agradar a Deus, como dele obter os benefícios necessários? Não basta orar e jejuar? O profeta conduz o povo a rever atitudes, a perceber incoerências. É possível aproximar-se de Deus, lesando o próximo? O necessitado? Uma mão lava a outra mesmo? O salmista considera o pecado cometido. Sua marca permanece. Como fazer para libertar-se? Uma nódoa manchando, como purificar-se? Confessar o mal feito, perceber a gravidade da ofensa ao próprio Deus. Deus lê os corações. Como agradar a Deus? O ser humano necessita do Espírito de Deus, de sua sabedoria, do acesso que só Deus pode dar.
O evangelista Mateus menciona a questão dos discípulos de João, sobre o jejum praticado por eles e pelos discípulos dos fariseus, comparando com os de Jesus, que não jejuavam. Oferecem a oportunidade para Jesus revelar o significado da sua presença entre nós. Jesus expressa a misericórdia do Pai. Veio reconciliar a humanidade com Deus. Anuncia a nova e eterna aliança com a humanidade. Aliança nupcial de Cristo com a Igreja, como mais tarde expressou Paulo. Jesus fala em nome de Deus. Jesus revela a identidade dele e do Pai. “Eu e o Pai somos Um”. A presença de Jesus é festa, é alegria, é comemoração, é comunhão com Deus. Mistério gozoso. Virá o Mistério doloroso. Sua prisão, paixão, crucifixão, morte. Acarretando sofrimento, solidariedade, provação, jejum dos discípulos, que a ele aderiram. Porque lhes será tirado. Voltará ao céu de onde veio, retornará ao Pai, por Ele enviado. Concederá o Espírito prometido.
O profeta Isaías afirma que Deus assim falou: declare em alto e bom som para que todos ouçam entendendo bem a própria contradição. O meu povo aparentemente me busca todos os dias para conhecer os meus desígnios, procedendo como se praticasse a justiça e não abandonasse a lei divina. Nesta pretensão exige julgamentos justos da minha parte em relação a ele, além de querer estar na minha proximidade. Pede satisfações: por que não me regozijei pelos jejuns praticados e ignorei quando manifestava a própria humilhação. Pela simples razão: no dia do jejum tratavam negócios, oprimiam empregados, promoviam brigas, litígios e agressões impiedosas.
O profeta, em nome de Deus, desmascara a farsa piedosa: jejuar e procurar negócios lucrativos, privar-se de alimentos e lesar o próximo. No céu é ouvida a voz da oração sincera, porém ecoam os ruídos de rixas e golpes violentos. A liberdade da pessoa, do povo, é dom precioso muito recordado após os desterros. O egoísmo destrói a compaixão. O compartilhamento da dor estabelece e sustenta a solidariedade fraternal. Com esse espírito quer ser ouvido no céu? Aprecio o dia em que alguém se mortifica? Inclinar-se baixando a cabeça como os juncos movidos pelo vento, deitar-se em saco sobre cinza? Chama a isso jejum, dia agradável ao Senhor?
O jejum é autenticado com as obras de misericórdia, porque transfigura o ser humano, como o sol inaugura o novo dia. Pela misericórdia, o homem e a mulher resplandecem, porque revelam a glória de Deus. O jejum que aprecio é diferente: quebrar cadeias injustas, libertar prisioneiros. Repartir o pão com o faminto, acolher em casa os pobres e peregrinos, vestir os nus. Focalizando bem a atitude, o povo brilhará como o sol que nasce cada dia, refletirá a glória de Deus. O povo invocará o Senhor e ouvirá: “Eis-me aqui”! A solidariedade construirá relações fraternas. A espiritualidade forjará nova cultura. Deus é o Deus dos vivos! Deus é vida em plenitude.
O Salmo reconhece a misericórdia divina. No perdão Deus manifesta seu poder. O ser humano reconhece suas culpas e que só Deus pode mudar sua situação. O mal realizado, o pecado cometido carrega a culpa da ação contra a consciência moral, da ofensa ao Senhor. Deus não precisa de dons humanos, Ele tudo pode, tudo detém. Deus acolhe o coração contrito, o bom propósito expresso pelo retorno ao Caminho Verdadeiro para a Vida. O salmista nos prepara, conduzindo-nos ao Filho que se revelou caminho, verdade, vida, porta de acesso ao Reino de Deus.
Mateus, narrando o Evangelho, nos fala da acolhida do dom de Deus: Jesus, o Filho que veio para habitar entre nós para sempre. Passou pela vida fazendo o bem, dando-nos acesso pela sua palavra, convívio, paixão e ressurreição à vida verdadeira. Deixando-nos o dom de Deus: o Espirito que nos convencerá de toda verdade, advogado de Deus em nós para o verdadeiro discernimento de sua vontade.
A quaresma nos oferece a oportunidade de um itinerário espiritual para a conversão, preparando-nos para a festa da Páscoa da Ressurreição, a Campanha da Fraternidade nos anima, afirmando que a vida é dom e compromisso, o lema samaritano nos convida a fazer o mesmo: ver, sentir, compadecer-se, cuidar do próximo, da vida. O discernimento proposto pelo profeta Isaías sobre o que Deus deseja de nós em relação ao próximo, ao verdadeiro jejum, Deus responde, cura, fortalece, concede felicidade porque a sociedade se reconstrói. As sugestões do salmista, reconhecendo que só Deus perdoa, apaga, lava as faltas e pecados, dando-nos seu Espírito. Mateus nos apoia, evangelizando-nos para acolher a presença companheira de Jesus em nossa vida, estimulando-nos a seguir seus passos, a viver a própria vocação fraterna solidariamente. Que o Senhor nos conforte e console com sua luz e presença.
Pe. Theodoro Peters, S.J.