José perplexo
Extraído de “A Vida de Cristo” por J. Perez de Urbel”
De volta a Nazaré
Entretanto, Maria (voltando da visita a Isabel) atravessava de novo o planalto de Samaria. Depois de contornar as encostas dos Montes de Gelboé – que lhe traziam à memória as lutas de seus antepassados – voltava, pelo lugarejo de Naim, a pisar no vale onde ficava sua aldeia de Nazaré. Já se estava no verão, época em que os cardos silvestres começavam a murchar e a espalhar sementes, e os aldeães debulhavam trigo à porta das casas.
A planura de Israel se via despojada de todos os seus encantos primaveris. Só restava a verdura dos vinhedos, aqueles vinhedos que davam fama aos vinhos de Engadi. No sopé dos montes Hermon e Tabor, que limitavam a planície, luziam de brancura grupos de casas, modestamente envoltas nas curvas dos caminhos e em verdes arvoredos. Ali ficavam Endor, Iksal, Caná, Séforis, Jafa, e, entre elas, Nazaré.
Maria se aproximava dos seus com o coração simultaneamente repassado de alegrias e preocupações. Seu abandono aos planos de Deus era absoluto e perfeito. Mas, interiormente, repetia a si própria a pergunta: “Que pensaria dela a gente de Nazaré? Como convenceria os parentes do prodígio que nela se realizara? Como o explicaria ao prometido?” No meio das dúvidas e vacilações que a a agitavam, preferiu não discorrer mais, certa de que Deus se manifestaria a favor de sua inocência.
As mulheres têm sempre uma perspicácia especial para estas coisas e devem ter sido as primeiras a se aperceberem do estado de Maria. Talvez, por meio delas, talvez através do “amigo do esposo”, homem de confiança mediante o qual noivo e noiva estabeleciam contado durante os esponsais, a notícia chegou, rapidamente, aos ouvidos de José. E o evangelista Mateus – que nos transmite as coisas respeitantes ao esposo de Maria, talvez porque colheu os dados de uma fonte galileia, de Tiago, primo do Senhor – é quem nos refere as dúvidas, as preocupações, as ansiedades, as angústias do honrado carpinteiro: “José, que era homem justo e não a queria difamar, decidiu abandoná-la secretamente”.
A conduta
Outro qualquer, em seu lugar, saberia perfeitamente o que tinha de fazer. Embora tão sagrados como o próprio matrimônio, os esponsais também podiam ser dissolvidos pelo divórcio. Mas o divórcio, para ser legal, requeria uma acusação jurídica, que trazia consigo a desonra e, até mesmo, a morte da desposada, dado que, em casos desta natureza, a lei previa a lapidação.
Era isto, precisamente, que José queria evitar. Ele era “justo”, e foi, segundo esta justiça, que julgou o caso de Maria. Tinha sérios motivos para a conhecer e, no fundo, acreditava que a razão estava do lado dela.
Então, como explicar aquilo tudo? Passava-lhe a ideia de uma violência naquela demorada viagem até às montanhas de Judá, mas isto lhe parecia absurdo. Começava a pensar que poderia se tratar de algo extraordinário, de um mistério semelhante ao daquela virgem de que falava Isaías.
Em qualquer caso só via uma resolução a tomar: deixar aquela mulher que ou já não lhe pertencia plenamente, ou nunca poderia vir a lhe pertencer. E um temor reverente o fazia estremecer, ao pressentir ali uma intervenção direta do céu. Então, ele se decidiu a abandoná-la em segredo.
Perguntou São Jerônimo: “Como é chamado ‘justo’, se se admite que ocultava o delito da mulher? Mas é que esta maneira de proceder é um testemunho a favor de Maria: José quer envolver em silêncio aquilo que, talvez, encerre um mistério, que ele desconhece”.
Uma tolerância discreta e inerte podia parecer aprovação e cumplicidade. Por outro lado, tem certeza de que Maria está inocente, e por isso evita o escândalo de um divórcio público. Cheio de dúvidas, desconcertado por aquele enigma, que não consegue explicar, resolve separar-se de Maria, sem chamar a atenção da opinião pública.
O sonho consolador
Foi, a esta altura, que o Anjo do Senhor lhe apareceu em sonhos e lhe disse: “José, Filho de Davi, não temas receber Maria por tua esposa. Quem ela conceber é obra do Espírito Santo, Ela dará à luz um filho, ao qual porás o nome de Jesus, pois há de libertar o povo de seus pecados”.
Tranquilizado por esta manifestação, José obedeceu ao mandato do céu e abriu a Maria as portas de sua casa, com o cerimonial de costume. Celebrou-se o banquete de bodas com a solenidade e modéstia que sua condição permitia. Aos olhos da gente, seu casamento foi como outro qualquer.
Encarregado de pôr o nome ao filho esperado, José passa a desempenhar as funções de pai de família, cabeça legal daquela casa de Nazaré. É preciso que ninguém saiba ainda do mistério da maternidade divina e, portanto, era necessário que um sombra de paternidade terrena assegurasse a honra da Mãe e do Filho.
Mas José desempenhava outra missão, não menos importante. Os Profetas tinham anunciado, muitas vezes, que o Messias haveria de nascer da Casa de Davi, e, então, graças a José, seu Pai legal, podemos nele reconhecer o herdeiro do grande rei de Israel, visto que a Mãe não tinha capacidade de lhe transmitir os direitos régios.
Esta é a razão, pela qual os dois evangelistas, que se ocuparam da infância de Jesus, ao falarem de sua árvore genealógica, enumeram não a ascendência de Maria, mas a de José, embora um deles, Mateus, trace a genealogia legal e o outro, Lucas, nos ofereça a genealogia de fato, de acordo como o modo de pensar dos gregos convertidos, para os quais ele escrevia.
De fato, o casamento de José com Maria supunha, dados os costumes do povo hebreu, que também nela correria o sangue de Davi. Sabemos, através de São Justino e de Santo Inácio de Antioquia, que os primeiros cristãos o consideravam uma verdade indiscutível.