SÃO AS NUVENS
JOSÉ TOLENTINO MENDONÇA
QUERIDA AMAZôNIA
O PAPA TEM INSISTIDO A QUE CONTRARIEMOS O DÉFICITE DE CAPACIDADE DE SONHAR QUE PARECE HOJE TER ACOMETIDO O MUNDO
Não só os católicos mas muitos homens e mulheres de boa vontade sentem uma dívida de gratidão para com o magistério profético do Papa Francisco. E se quiséssemos traduzir numa expressão o que transversalmente lhe devemos, talvez a encontrássemos agora escrita na exortação pós-sinodal que ele acaba de publicar, à maneira de um programa de ação: o “ampliar de horizontes”. O mundo contemporâneo, a braços com uma mudança epocal sem precedentes, tentado a adotar um egoísmo preventivo e um agravar da conflitualidade, precisa de escutar este apelo, que nos recorda que o conflito nos fecha e a dialética reduz dramaticamente o nosso campo de visão num momento em que, pelo contrário, a realidade nos chama a superar perspetivas limitadas, a sondar “outros caminhos, talvez ainda não imaginados” e a ampliar horizontes.
Numa exortação que, desde as primeiras palavras, se parece a uma amigável carta escrita ao mundo, Francisco, partindo do pressuposto de que “as verdadeiras soluções nunca se alcançam amortecendo a audácia”, introduz o conceito de “transbordamento”, afirmando que está aí a via de saída que temos, como sociedades, de identificar. Que conceito é este de “transbordamento”? É curioso que o Papa proponha como via de saída (civilizacional, política, eclesial) uma categoria que se liga à própria natureza da vida e à sua organização profunda. Temos, assim, de escutar a grande lição da vida. Porque “a vida é transbordante” na sua matriz e é desse modo que ela se exprime e propaga. E quando essa possibilidade é negada mais se acentua a contradição entre o que a realidade poderia ser e o que ela é, de facto. Por isso, escreve Francisco: “Quanta dor e quanta miséria,/ quanto abandono e quanto atropelo nesta terra bendita,/ transbordante de vida!”. É curioso que o Papa proponha como via de saída (civilizacional, política, eclesial) uma categoria que se liga à própria natureza da vida e à sua organização profunda
Na mesma linha, o Papa tem insistido a que contrariemos o déficite de capacidade de sonhar que parece hoje ter acometido o mundo. Dirigindo-se aos jovens em agosto de 2018, ele desafiava a que tivessem sonhos, porque sem eles não se poderá entender a vida, a força da vida. Mas os grandes, os verdadeiros sonhos — esclarecia então — são os “sonhos do nós”, não apenas os “do eu”. E recomendava: “Sede peregrinos na estrada dos vossos sonhos, arriscai fazer essa estrada.” E em dezembro desse ano, numa homilia em Santa Marta, afirmava: “O sonho é um lugar privilegiado para procurar a verdade. Tantas vezes o próprio Deus escolheu falar através dos sonhos.”
Sintomaticamente, a exortação “Querida Amazônia” está estruturada a partir de quatro sonhos nos quais o Papa deseja envolver-nos. São “sonhos do nós”.
1) Um sonho social, porque uma abordagem ecológica sistêmica não separa o clamor da terra do grito dos pobres. Não se pode cuidar do bioma amazônico sem pensar nas condições de vida dos povos amazônicos e sem garantir o seu protagonismo e a sua dignidade.
2) Um sonho cultural, porque a promoção do território amazônico não se opera por um desenraizamento da identidade cultural dos seus povos mas sim preservando a imensa riqueza cultural que a caracteriza.
3) Um sonho ecológico, porque o equilíbrio do planeta depende da saúde do ecossistema amazônico. A proteção da “vida transbordante que enche os seus rios e as suas florestas” tornou-se uma urgência global. É o destino da Humanidade inteira que se joga ali.
3) Um sonho eclesial, porque a Igreja é chamada a desenvolver processos reais de inculturação que permitam o acontecer de um verdadeiro encontro com o Evangelho. Como diz o Papa: “Sonho com comunidades cristãs capazes de se devotar e encarnar de tal modo na Amazônia que deem à Igreja rostos novos com traços amazônicos.”.