Os Livros dos Reis – I e II *
(931 a 720 a. C.)
Introdução
Depois de Davi e Salomão, os dois Livros dos Reis nos mostram, com altos e baixos, o que sucedeu durante 210 anos que duraram os reinos do norte e do sul, separados ainda no tempo de Roboão, filho e herdeiro de Salomão, que podemos dizer que foi aquele que tudo viu e nada aprendeu. Estas obras não são tanto crônicas, e por isso estão constantemente remetendo o leitor aos Anais dos Reis, mas uma narrativa sumária, com avaliações do Autor ou Redator, que tem o cuidado muito honesto de fazê-las sem interferir na descrição dos fatos.
A inspiração dos livros é a meditação sobre a Aliança: a fidelidade de Deus e as vacilações do povo, em especial dos seus reis. A obra destaca mais a atuação dos profetas e não os reis! Não é uma narrativa dos fatos que se sucedem e se esquecem, mas focaliza as intervenções de Deus, fazendo memória destes momentos de salvação. Impossível, sendo assim, esquecer as objeções de Samuel, o Vidente, o último dos Juízes, contra o desejo do povo de ter reis como todos os outros povos (ver, por exemplo, 1Sm 12,17). A memória de seu aviso profético é válida até hoje, e é útil para instruir e sugerir boas escolhas políticas. O Autor nos que quer educar e exortar, sendo levado pelo sopro do Espírito.
A honestidade do Autor (ou autores) o impede de esconder o fracasso do rei piedoso e a prosperidade do rei ímpio. Sua “teologia” não se impõe aos fatos. Podemos confiar em sua narrativa, que termina com os começos do cativeiro da Babilônia. Os dois reinos, do norte e do sul, Israel e Judá passaram, mas o povo eleito sobrevive até hoje e a história da salvação não cessa!
Há uma atmosfera de esperança no final do segundo livro, quando lemos:
“No trigésimo sétimo ano do desterro do (rei) Jeconias de Judá, no vigésimo quarto dia do décimo segundo mês, Evil Merodac, rei da Babilônia, no ano de sua subida ao trono, concedeu anistia a Jeconias e o tirou da prisão. Prometeu-lhe seu favor”.
O triste fim do rei Salomão (1Rs 1-12)
Salomão deixou uma memória de rei sábio e justo. No Livro do Eclesiástico (Siracida), recebe um elogio memorável:
“Salomão, rei em tempos tranquilos, porque Deus pacificou suas fronteiras, construiu um templo em sua honra e fundou um santuário perpétuo.
Como eras sábio em tua juventude, transbordando doutrina como o Nilo! Teu saber cobria a terra (…). Tua fama chegou até a beira mar (…). De teus cantos, provérbios, enigmas e sentenças os povos ficaram pasmos. Amontoaste ouro como se fosse ferro e acumulavas prata como chumbo, mas entregaste teu corpo às mulheres, dando-lhes poder sobre ele. Lançaste uma mancha em tua honra e infâmia em teu leito, atraindo a ira sobre teus descendentes e desgraças sobre teu leito nupcial, pois o povo se dividiu em duas partes, com a usurpação do reino de Efraim (Samaria, Israel, o Reino do Norte). Mas Deus não retirou sua lealdade, nem deixou de cumprir suas promessas…”
O Autor dos Livros dos Reis mencionam que Salomão pediu a Deus a sabedoria (1Rs 3,1). No Livro da Sabedoria (cap. 7), lemos a oração atribuída ao jovem rei. Os livros sapienciais, incluindo o Cântico dos Cânticos, foram tidos como obras de Salomão, mesmo os mais recentes, escritos muito tempo depois do seu reinado. Os seus julgamentos também tiveram e têm grande fama (1Rs 3,5-15). Salomão construiu um palácio real e também o Templo, que foi solenemente dedicado (1Rs 6-7). Na memória dos povos ficou a visita que ele recebeu a misteriosa Rainha de Sabá, que viera visitá-lo atraída pela fama de sua sabedoria..
Para manter seu luxo, seu exército e suas obras, Salomão cobrava pesados impostos. Gastava também com lugares de culto para os ídolos de suas esposas estrangeiras: “Salomão seguiu Astarté , deusa dos fenícios, e a Malcom, ídolo dos amonitas.Fez o que o Senhor desaprovava” (ver 1Rs 11,5-8).
Jesus se referiu ao luxo de Salomão: “Eu vos afirmo que nem Salomão em toda a sua glória se vestiu jamais como um destes lírios do campo” (ver Mt 6,29; Lc 2,27).
O profeta Aias anunciou ao velho e corrupto rei que seu reino seria dividido (1Rs 11,32). Um alto funcionário, Jeroboão, se revoltou contra Salomão, foi vencido, mas se refugiou junto ao Faraó do Egito: “Para mais dados sobre Salomão e sua sabedoria, vejam os Anais de Salomão. Salomão reinou 40 anos em Jerusalém sobre todo o Israel. Quando morreu, foi enterrado na Cidade de Davi, seu pai. Seu filho Roboão reinou em seu lugar” (1Rs 11,41-42).
Não durou muito a autoridade de Roboão sobre “todo Israel”. Somente lhe ficou fiel Jerusalém (Reino de Judá). Jeroboão voltou do Egito e as dez tribos do norte, se separaram, aderindo a ele, que começou seu reinado no norte, “Israel” (ver 1Rs 12,20). Assim foi o triste fim da glória de Salomão. Estes eventos revelaram a Israel e revelam também a nós que nossas políticas, sem referência a Deus, o Senhor dos Senhores, sempre fracassam, na Igreja ou fora dela.
Deus permanece fiel (1Rs 1,13-15)
Nos Livros dos Reis, não são os monarcas os personagens principais. O protagonismo é do Senhor Deus e seus profetas, que apontam para o Messias, o Cristo, o Rei definitivo do Reino que não teria fim.
Jeroboão quis erigir santuários em seus territórios, para que o povo não continuasse acorrendo ao Templo de Jerusalém e prestigiando, ainda que indiretamente, o rival, Roboão. Um profeta agiu imediatamente, sem nenhum medo:
“Quando Jereboão, de pé, junto do altar, se preparava para queimar incenso (usurpando, portanto, funções sacerdotais), chegou de Judá a Betel um homem enviado pelo Senhor, por ordem de quem gritou contra o altar: “Altar, altar! Assim diz o Senhor: nascerá um descendente de Davi que sacrificará sobre ti os sacerdotes dos lugares altos (onde se adoravam os ídolos), que queimam incenso sobre ti e queimará ossos humanos sobre ti”. E ofereceu um sinal: “Este é o sinal anunciado pelo Senhor: o altar rachará e a cinza que está sobre ele se derramará!” (1Rs 13,1).
No capítulo seguinte, o 14, Jeroboão, diante da doença de seu filho, Abias, enviou sua mulher, disfarçada, a um profeta, Aias, para obter a cura. Mas ela teve uma surpresa dura e triste:
“Quando Aias ouviu o ruído de seus passos à porta, disse: ‘Podes entrar , mulher de Jeroboão. Por que te fazes passar por outra? Tenho má notícia para te dar. Vai dizer a Jeroboão: ‘Assim diz o Senhor: ‘Eu te direi do meio do povo e te fiz chefe do meu povo, Israel, arrancando o reino da Casa de Davi para dá-lo a ti. Mas visto que tu não foste como meu servo Davi, que guardou meus mandamentos e me seguiu de todo o coração, fazendo unicamente o que Eu aprovo, mas te comportaste ainda pior que teus predecessores, fazendo para ti deuses estranhos, ídolos de metal, para me irritares, e voltaste as costas para mim, por isso trarei a desgraça à tua casa. Exterminarei todo israelita que urina contra a parede, escravo ou livre, e varrerei tua casa, como se faz com esterco. Os teus, que morrerem nos povoados, serão devorados pelos cães, e os que morrerem em campo aberto serão devorados pelas aves do céu’. O Senhor assim falou. E tu levanta-te, vai para tua casa. Quando puseres os pés na cidade, o menino morrerá”.
De fato, a dinastia inaugurada por Jeroboão não se firmou (ver 1Rs 14,19-21).
O rei em Jerusalém, filho de Salomão, Roboão, também agiu mal contra o Senhor e sua Lei: Houve até prostituição sagrada no país (1Rs 14,24), isto é, os adoradores dos ídolos se prostituíam em sua honra nos lugares de culto idólatra. Parecia a fé dos pais, Abraão, Isaac e Jacó, juntamente com a Lei de Moisés, estava extinta. Afinal o faraó Sesac atacou Jerusalém e saqueou o Templo (ver 1Rs 14,29-31).
Impressiona a nós como um pequeno povo sobreviveu e sobrevive, através das lutas e terremotos da história! Os Livros dos Reis são um convite perpétuo à esperança e à fidelidade.
Tristes reis, o grande Acab e o Profeta Elias (1Rs 16-21)
Segundo o capítulo 16, Abias, sucessor de Roboão, continuou servindo aos ídolos. Mas, “em consideração a Davi, o Senhor seu Deus lhe deixou uma lâmpada em Jerusalém, dando-lhe descendentes e conservando Jerusalém” (1Rs 15,4). Sucedeu-lhe Asa, neto, por sua mãe, de Absalão, o filho rebelde de Davi. Ele restaurou o culto do Templo e aboliu os lugares altos, dedicados aos ídolos. Com o que pôde reunir de ouro e prata no Templo, comprou o apoio dos sírios de Damasco, dando fôlego ao Reino de Judá, e lhe permitindo destruir edificações militares do rival do norte e, por sua vez, criando fortalezas na fronteira. Para mais notícias, como de hábito, somos remetidos aos Anais do Reino de Judá: “E seu filho Josafá reinou em seu lugar” (1Rs 16,24).
Há uma breve notícia sobre o sucessor de Jeroboão, Nadab, “que imitou seu pai e os pecados que ele fizera Israel cometer” (1Rs, 16,25-26). Uma conspiração, liderada por Baasa, o derrubou do trono e o matou, com toda a descendência de Jeroboão, “sem deixar ninguém vivo”. Mas Baasa “imitou Jeroboão e os pecados que este fizera Israel cometer” (ver 1Rs 16,25-31).
Então, o Senhor interveio e “dirigiu a palavra a Jeú, filho de Hanani, contra Baasa”. Foi um oráculo anunciando a destruição da nova dinastia de Baasa, erguida sobre a destruição da família de Jeroboão. A profecia repetida se cumpriu. Foram tristes tempos de guerras entre os reinos irmão do norte e do sul, conspirações, chacinas e idolatria. Finalmente, um caudilho mais capacitado, humanamente, assumiu o trono de Israel, Acab, reinando por 22 anos, mas continuando a favorecer os ídolos e seus costumes terríveis, censurados pela Lei e pelos Profetas, como a prostituição ritual e os sacrifícios humanos (ler o capítulo 16, e o comentário final – 1Rs 16,34, sobre sacrifícios humanos).
E o Senhor mandou um grande profeta, Elias, natural de Tesbi, de Galaad, que confrontou Acab: “Pelo Senhor, Deus de Israel, a quem sirvo, nestes anos não cairá nem orvalho nem chuva, se eu não o ordenar” (ver 1Rs 17,1).
Lemos a seguir como Elias, dirigido pelo Senhor, ser retirou a um lugar deserto, foi alimentado “por corvos, que lhe levavam pão pela manhã e carne pela tarde”. Vindo a faltar água, novamente caminhou, por ordem divina, para os confins do atual Líbano, ao povoado de Sarepta, onde foi sustentado por uma pobre viúva e seu filho, pois, milagrosamente, “a farinha da vasilha não se esvaziou, nem a jarra de azeite se esgotou, como dissera o Senhor, por meio de Elias”, Outro milagre: a cura do filho da mulher. Curioso! Sarepta é um lugar da região nativa de Jezabel, mulher de Acab, de terrível memória como veremos adiante. Com esta indicação, o texto nos leva a perceber que o domínio do Senhor Deus de Israel se estendia aos povos pagãos.
O conjunto dos relatos sobre Elias mostram o profeta enfrentando os idólatras, Acab e a injusta e perversa Jezabel. Este conjunto ou ciclo de Elias destaca como o Profeta enfrentou, praticamente sozinho, apenas com a força da palavra inspirada, os poderes da sua época, defendendo a verdadeira religião e a justiça. Seu principal confronto com Jezabel surgiu exatamente porque, para fazer obras de expansão do palácio, ela tramou a morte de Nabot, dono de uma vinha e confiscou em propriedade para alegrar seu marido, Acab (ver 1Rs 21).
Elias insistia em que o Senhor Deus era o único, que ídolos eram criações humanas. A sua imagem poderosa que fica dos capítulos de 17 a 21 do Primeiro Livro dos Reis e dos capítulos 1 e 2 do Segundo, se gravou profundamente no coração de Israel. Alguns contemporâneos de Jesus pensaram que ele era o próprio Elias, que voltara para abrir os tempos messiânicos (Mt 16,4). Jesus afirmou que João Batista era o Elias que devia vir (Mt 11,14). E foi perguntado ao próprio Batista se ele era Elias (Jo 1,21.25). Elias com Moisés significam a Lei e os Profetas na cena da Transfiguração (Mt 17,3ss). Jesus se refere ao episódio da viúva de Sarepta, falando em Nazaré (ver Lc 4,25s). Paulo (Rm 1,12) dá o nome de Elias a uma parte da Bíblia. Tiago (Tg 5,17) apresenta Elias como modelo de oração.
A Elias é atribuída grande importância política. Como Natã levou Davi a passar o poder para Salomão, Elias foi quem escolheu Hazael como rei de Aram (Síria), e Jeú, como rei de Israel. Obedecendo ao Senhor, ele se faz respeitar pelo povo e temer pelos poderosos. Afinal, ungiu Eliseu seu sucessor, e foi “arrebatado para o céu num carro de fogo” (ver 2Rs 2,1-18). Quanto à influência de Eliseu veremos adiante. Outros profetas da época participaram ativamente dos acontecimentos. Lembremos Shemaiá, Aia, Miquéias, a profetiza Huldá, Isaías…
Seja o que for discutido sobre a historicidade dos feitos de Elias, é indiscutível que os reis, aos quais se opôs, e os costumes pagãos que condenou, fracassaram, e tudo o que o profeta representou se conservou através da história até nossos dias. Não é pouca coisa!
Há aspectos censuráveis na narrativa dos atos de Elias. Assim, quando manda matar os profetas de Baal, depois de tê-los vencido com ajuda dos céus (ver 1Rs 18,18-46), ou faz descer fogo do alto para matar seus perseguidores (2Rs 1). Terá sido inspirado nesta passagem o pedido ingênuo dos discípulos a Jesus: “Queres que façamos descer fogo do céu para devorá-los?”. Juntando todas as referências. podemos imaginar que o fogo foi um modo de falar do fracasso das forças da terra diante da inspiração divina, que animava os enviados do Senhor.