O Livro “dos Números”
Nós estamos acostumados com este título, que evoca o censo das tribos na caminhada do Sinai até a Terra Prometida. Os judeus o chamam – muito apropriadamente – “no deserto”. De fato, a narrativa começa no Sinai, com a preparação para continuar a longa marcha (Nm 1,1-10,10; a temporada em torno a Cades (Nm 10,11-20,13); trajeto até Moab, preparando para a entrada no país que, hoje, chamamos, Terra Santa ou Israel (Nm 20,14-36,13). O livro une trechos de leis, pequenas histórias (tradições históricas e lendárias), alguns poemas… Nem sempre se percebe porque estas passagens estão unidas. Possivelmente, os redatores juntaram o material em respeito a sua antiguidade, sem querer deixar nada de fora, mas sem poder organizá-los com acabamento mais coerente. Se é assim, quer dizer que tiveram um grande respeito ao que era conservado oralmente e em velhos papiros.
É uma narrativa que nos faz pensar que toda Terra Prometida exige luta e trabalho para ser alcançada. A bênção de Deus é mais forte, contudo, do que o medo daqueles grupos nômades, sua desconfiança nas promessas divinas, na única divindade revelada a Moisés, o Deus de Abraão, Isaac e Jacó, rebeliões, guerras. O ímã que atrai aquelas tribos sem dúvida, contudo, permaneceu a Promessa da terra, onde corre leite e mel (ver Ex 3,8). A lição que podemos tirar destes antigos relatos da aventura de Moisés “no deserto” talvez seja de que a Mão de Deus nos conduz em meio às dificuldades, muitas causadas por nós mesmos, o povo de “dura cerviz” (ver Ex 32,9; 33,3; Dt 9,13; At 7,51), isto é, “cabeça dura”.
Certos episódios já narrados no Livro do Êxodo são retomados. Mas o Livro terá sido redigido por membros da tribo sacerdotal de Levi, porque enfatiza o papel dos levitas, e coloca, no recuado tempo do nomadismo no deserto, o ideal de um estado organizado em torno de Jerusalém e do Templo, com predomínio – é claro – dos descendentes dos sacerdotes e levitas. Não há reis, e a obra relembra os tempos em que o povo era livre sob a liderança de Moisés.
Quando o livro dos Números foi escrito…
Quando o Livro dos Números foi escrito, não havia ainda a noção de “Bíblia”, de “Sagrada Escritura”. Havia, sim, fé em que Deus Vivo e Verdadeiro, o Deus de Abraão, Isaac e Jacó, era o Deus libertador, que conduzia dia e noite o seu Povo escolhido. Assim, há um esquema de 40 anos (aproximadamente o tempo de uma geração) e 40 localidades do itinerário (ver Nm 33), que serve para organizar as lembranças e tradições do tempo no deserto, o tempo das coisas narradas, e comentários ou adaptações ao tempo do narrador e seus leitores. Um exemplo: os números de pessoas de cada tribo combinam com os do tempo dos reis de Israel, mas são extravagantes para os anos de pastoreio no deserto. Do mesmo modo, verificamos em anotações dos narradores para seus leitores, já instalados em Israel, aquém do rio Jordão, quando mencionam que os antepassados estavam além do rio, nos campos de Moab. Ora, para o povo e Moisés, olhando a Terra Prometida do monte Nebo, ela estava “além do Jordão”, e os campos de Moab, “aquém” (ver Nm 22,1).
O Livro dá muita importância às genealogias. O que elas podem nos dizer? Talvez nos sugiram que nossas raízes humanas são regadas por Deus, e que a fé nos faz continuar a história sagrada, que vai sendo “escrita” por Ele conosco. O que nos leva ao capítulo 11 da Carta aos Hebreus e seu belo refrão: “Foi pela Fé”. “Foi pela Fé que Abraão obedeceu ao chamado de Deus (…) Pela Fé, Moisés, já adulto, se recusou ser chamado filho da filha do faraó (…) Pela fé, caíram os muros de Jericó (…)”. No capítulo 16 dos Números, guarda-se a memória de um episódio, em que os descrentes nas promessas, que tentaram afastar o povo da entrada na Terra que o Senhor queria dar ao Povo, foram engolidos pela terra… De fato, a história mostra a derrota e o desaparecimento das culturas descrentes. No último século, assim desapareceram o fascismo, o nazismo e o comunismo. Pela Fé a Igreja vai superando perseguições e crises internas. Enfim, como lemos no Novo Testamento: “Esta é a vitória que vence o mundo, a vossa Fé” (1Jo 5,4).
Um texto difícil: o relato da serpente de bronze
(Nm 21,4-9)
Esta passagem é muito importante, porque o Livro da Sabedoria (ver 16,6) menciona a serpente de bronze como símbolo da Salvação, e porque Jesus se refere a ela como símbolo dele mesmo crucificado: “Ninguém subiu ao céu, senão o que desceu do céu: o Filho do Homem. Como Moisés ergueu a serpente no deserto, assim o Filho do Homem deve ser erguido, para que todo aquele que crer nele tenha a vida eterna” (Jo 3,14-15). Esta serpente de bronze foi mantida na Arca da Aliança e no Templo, até ser destruída por Ezequias: “Suprimiu os terreiros de culto, quebrou as estelas, derrubou as estátuas de Astarté e fez em pedaços a serpente de bronze, que Moisés havia feito, porque os filhos de Israel até então queimavam perfumes diante dela. Chamavam-na ‘Nehustan’ (2Rs 18,4)”.
No mundo antigo, a serpente, muitas vezes, foi um símbolo de fecundidade e até de cura. Assim entre os gregos também e deles para os médicos modernos: um cajado com duas serpentes enroscadas nele. O texto de Números diz que Moisés mandou fazer a serpente de bronze e a levantou numa haste, para que os israelitas que fossem picados por “serpentes abrasadoras” fossem curados e não morressem. Este flagelo tinha sido um castigo, pois o povo se rebelara contra a dureza do caminho para contornar o território de Edom. Chegaram a maldizer o maná: “Por que nos tiraste do Egito, para morrermos no deserto Não há pão nem água e estamos enjoados deste miserável alimento!” (Nm 21,5). Então sobreveio a praga das “serpentes abrasadoras (“seraf”), cujas picadas “queimavam como fogo, que os moderam e morreram muitos em Israel” (Nm 21,6).
Ora, os “serafins” (de “seraf”) são seres “angélicos”, executores dos decretos da justiça de Deus (ver Nm 21,6.8; Is 14,29). Quando o povo se converte, o que era causa de sofrimento e dor, se torna bênção e cura! Em Deuteronômio 8,15 e em Isaías 30,6, o deserto é chamado de “terra dos serafins alados”, terra de provação, mas também terra da experiência da bondade de Deus!
Um texto difícil: o relato da serpente de bronze
(Nm 21,4-9)
Esta passagem é muito importante, porque o Livro da Sabedoria (ver 16,6) menciona a serpente de bronze como símbolo da Salvação, e porque Jesus se refere a ela como símbolo dele mesmo crucificado: “Ninguém subiu ao céu, senão o que desceu do céu: o Filho do Homem. Como Moisés ergueu a serpente no deserto, assim o Filho do Homem deve ser erguido, para que todo aquele que crer nele tenha a vida eterna” (Jo 3,14-15). Esta serpente de bronze foi mantida na Arca da Aliança e no Templo, até ser destruída por Ezequias: “Suprimiu os terreiros de culto, quebrou as estelas, derrubou as estátuas de Astarté e fez em pedaços a serpente de bronze, que Moisés havia feito, porque os filhos de Israel até então queimavam perfumes diante dela. Chamavam-na ‘Nehustan’ (2Rs 18,4)”.
No mundo antigo, a serpente, muitas vezes, foi um símbolo de fecundidade e até de cura. Assim entre os gregos também e deles para os médicos modernos: um cajado com duas serpentes enroscadas nele. O texto de Números diz que Moisés mandou fazer a serpente de bronze e a levantou numa haste, para que os israelitas que fossem picados por “serpentes abrasadoras” fossem curados e não morressem. Este flagelo tinha sido um castigo, pois o povo se rebelara contra a dureza do caminho para contornar o território de Edom. Chegaram a maldizer o maná: “Por que nos tiraste do Egito, para morrermos no deserto Não há pão nem água e estamos enjoados deste miserável alimento!” (Nm 21,5). Então sobreveio a praga das “serpentes abrasadoras (“seraf”), cujas picadas “queimavam como fogo, que os moderam e morreram muitos em Israel” (Nm 21,6).
Ora, os “serafins” (de “seraf”) são seres “angélicos”, executores dos decretos da justiça de Deus (ver Nm 21,6.8; Is 14,29). Quando o povo se converte, o que era causa de sofrimento e dor, se torna bênção e cura! Em Deuteronômio 8,15 e em Isaías 30,6, o deserto é chamado de “terra dos serafins alados”, terra de provação, mas também terra da experiência da bondade de Deus!
Balaão: a bênção é mais forte que a maldição
(Nm 22,1-24,25)
Os dez primeiros capítulos do Livro dos Números são focalizados nos preparativos da caminhada para a Terra Prometida. O centro é a Arca e a Tenda da Aliança, o culto, as normas éticas do Povo Eleito. Os capítulos de 10 a 36 recordam o trajeto, a fidelidade do Senhor, as reações, às vezes bem problemáticas, do povo. Esta caminhada é uma epopéia militar, sim, mas sempre litúrgica, cultual. Os Números se interessam pelo passado para falar aos seus ouvintes e leitores da verdade do Deus fiel!
No capítulo 22, o povo se encontra quase à entrada da Terra Prometida, nos domínios do rei de Moab, que chama um famoso vidente para amaldiçoar aqueles nômades que o ameaçam. Este vidente, Balaão, natural de Petor, cidade junto ao grande rio Eufrates, vem de longe, muito bem pago para lançar suas maldições. Balaão é mencionado no Novo Testamento como mercenário e mestre em falsas doutrinas (ver 2Pd 2,16; Jd 11; Ap 2,14). No entanto, o relato de Números o mostra pronunciando, contra sua vontade e a encomenda do rei de Moab, profecias e bênçãos a favor de Israel: a primeira, louva Israel, que se destaca das outras nações; a segunda, louva Israel por não carregar tribulações e desgraças (idolatria?); a terceira, prevê a futura prosperidade dos filhos de Israel e suas vitórias; a quarta, prossegue com o tema das vitórias e conquistas dos hebreus.
Balaão parece ser uma importante figura histórica, pois uma estela descoberta em Deir ‘Allla o homenageia como famoso adivinho. Mas também é figura controversa, e Moisés o denunciou como um sedutor do povo para a idolatria (ver Nm 31,16; 31,8). De tudo o que Balaão disse a promessa de uma “estrela que se elevaria de Jacó e um cetro de Israel” (ver Nm 24,17) tem evocado nos leitores cristãos a estrela de Belém e o poder do Messias. Há em suas bênçãos muito do que tinha sido prometido a Abraão: uma descendência incontável!
Um episódio curioso: um Anjo detém Balaão, montado em sua mula. A mula vê o Anjo, mas o vidente não! E é a mula que ensina o vidente (ver Nm 22,22-35), um exemplo de fina ironia dos redatores do Livro dos Números!
As quatro bênçãos de Balaão (Nm 23-24)
Chamado para rogar pragas e amaldiçoar, Balaão se rende à força da verdade, à inspiração divina, e abençoa por quatro vezes Israel, para grande indignação do rei Balac.
O primeiro oráculo (Nm 23,7-10) recorda a numerosa descendência outrora prometida a Abraão. Vendo, do alto, o acampamento daqueles nômades, Balaão enxerga um povo “à parte, que não é contado entre as nações. Quem poderia contar a poeira de Jacó e enumerar os milhares de Israel? O segundo oráculo (Nm 23,18-23), elogia Israel porque é um povo diferente, onde não se pratica magia nem adivinhação. A menção a leões nos recorda que o símbolo da tribo de Judá é o leão, e Jesus mesmo é comparado ao Leão de Judá (Ap 5,5). Leões lembram, como também os búfalos, a força, a vitória. Mas, no caso de Israel, esta força não é própria, mas é dom de Deus, que os fez sair do Egito e do que Ele, a seu tempo diz a Seu Povo. O terceiro oráculo parece lembrar a fecundidade e beleza da Terra Prometida.
Finalmente, o quarto oráculo (ver Nm 24,17) fala de um futuro distante. Na linguagem concreta e poética dos povos orientais, o vidente menciona uma estrela, um rei poderoso que surgirá de Israel. Este oráculo tem sido interpretado como uma das fontes do messianismo em Israel: um rei ungido há de levar o povo eleito à vitória. O tema da estrela é evocado nos Evangelhos da Infância de Jesus (ver Mt 2,2.9-11 e Lc 2,30-32), bem como no Apocalipse (ver Ap 22,16) como símbolo messiânico, símbolo de Jesus, o Messias de Deus! As comparações guerreiras dos versículos seguintes (Nm 24,18-24) explicam como, no tempo de Jesus, a expectativa popular sobre o Messias o via como mais um dos conquistadores da história da violência humana. Entende-se a frustração diante de Jesus, “manso e humilde de coração”, com quem todos devemos aprender (ver Mt 11,29).