O Livro que recolhe toda uma tradição
O Livro do Levítico recolhe toda uma tradição de culto e comportamento santo, embora também tenha aspectos de legislação civil. Ele remonta aos tempos de Moisés e da Tenda de Reunião, mas ganhou este nome na tradução grega da Bíblia, chamada “dos 70”, feita em Alexandria, já quase chegando aos tempos de Cristo. Assim ele é colocado na esfera dos sacerdotes e levitas, isto é, os membros da tribo de Levi (ver Gn 29,34). O sacerdócio era reservado aos descendentes de Aarão e, depois, da família de Sadoc, uma família levita, mas que recebeu a honra e encargo do sacerdócio (ver Ez 44,10). Assim os levitas eram auxiliares da classe sacerdotal. Possivelmente, este livro recebeu a forma atual nos tempos do império persa, quando os judeus não tinham mais reis, escasseavam as vozes proféticas, mas eram livres para seguir sua religião, seguir seu direito próprio, assim resolvendo suas questões internas. Nesta situação, o Templo, o culto, os sacerdotes adquiriram caráter de centro de coesão. E eles tomavam sua influência dominante da Lei, a Torá, interpretada e vivida com bastante zelo e uniformidade pelas comunidades judias espalhadas pelo imenso território dominado pelos persas.
Não é um Livro de fácil acesso, mas ele faz parte da Revelação, a Igreja o retém com carinho e recomenda que o aproveitemos. Talvez alguém pense que, tratando tão extensamente dos sacrifícios do Templo, o Levítico seria um livro dispensável, pois agora temos o Santo Sacrifício de Cristo, que, de uma vez por todas, substituiu e elevou os antigos sacrifícios: “Portanto, que ninguém vos condene por questões de alimentos e bebidas, lua nova ou sábados. Tudo isso não passa de sombra do que estava por vir, mas a realidade é Cristo” (Cl 2,16). Lemos em Hebreus: “A Lei só tem a sombra dos bens vindouros (…) Cristo ofereceu um único sacrifício pelos pecados (…) Por uma única oferta, conduziu à perfeição, uma vez por todas, os que estão purificados do pecado” (ver Hb 10,1-18).
Contudo, um texto que tem, quase como refrão, “Sereis santos, porque Eu (o Senhor) sou Santo” (Lv 11,44-45; 19,2), deve ser visto com respeito religioso, levando o leitor cristão a encontrar nele um belo capítulo da História de nossa Salvação.
“Levítico”
O nome deste livro lembra a tribo de Levi, um dos Patriarcas, filhos de Jacó – Israel, que não deveria ter um território próprio, mas viveria misturada com as outras tribos e separada para o serviço do culto ao Senhor Deus (ver Dt 338-11; Js 21,1-8). Moisés e Aarão eram da tribo de Levi (ver Ex 2,1-10). Como a Aarão e filhos foi conferida a missão sacerdotal (ver Ex 28,1-5 e 39-43), eles e seus descendentes mais diretos foram, aos poucos ocupando posição superior, e os demais descendentes de Levi relegados a funções menores do culto da Tenda e, depois, do Templo. No tempo do Exílio da Babilônia, um levita, Sadoc, parece deter o privilégio do sacerdócio mais graduado (ver Ez 40,46; 43,19; 44,15). A explicação é dada a partir da alegação de que ele e sua família foi a única das famílias levíticas, que não adorou falsos deuses (ver Ez 44,10). De Sadoc derivam os saduceus, do tempo de Jesus, que controlavam o Templo e eram o partido mais chegado à colaboração com os romanos. Perturbações da ordem interferiam na base do seu poder político e econômico: o Templo mesmo. No tempo de Esdras, quando o escriba veio amparar os retornados na reconstrução de Jerusalém, os levitas aparecem como uma categoria auxiliar a dos sacerdotes, e inferior a eles (ver Esd 2,40-42).
Os sábios judeus de Alexandria, no entanto, quando traduziram este livro (Bíblia grega “dos 70”) deram-lhe o nome de “Levítico” por causa de sua forte relação com a legislação sobre o sagrado, o santo e o culto divino e não porque fosse um livro sobre a velha tribo de Levi, o filho de Jacó e Lia.
O livro do Levítico pode ser dividido em partes: Lv 1-7, as leis que orientam os sacrifícios; Lv 8-10: os sacerdócio de Aaarão e seus descendentes; Lv 11-15: as leis da pureza; Lv 16: o dia da expiação, com a famosa figura do “bode expiatório”; Lv 17-26, o chamado “código da santidade”; Lv 27, um tratado sobre oferendas e dízimos.
Levítico: o sacerdócio de Aarão (Lv 8-10)
As leis dos sacrifícios têm um interesse para nós, porque boa parte deles são sacrifícios que poderíamos chamar “de comunhão”: parte da oferta era para os servidores da Tenda ou do Templo, parte para o estrangeiro, a viúva, o órfão, parte para a família oferente partilhar na alegria.
Há também o critério da indenização do dano causado ao próximo e um cuidado de proporcionalidade, que são inspiradores do melhor direito: “Se não tem o suficiente para um cabrito, pela transgressão cometida oferecerá ao Senhor duas rolas ou dois pombos, um como sacrifício expiatório, outro como holocausto”. “Holocausto” é um sacrifício onde a vítima toda é consumida no fogo. Assim é chamado (“shoah”) o bárbaro extermínio cometido contra os judeus pela loucura assassina do nazismo e do facismo.
Há restrições alimentares, que, observadas até nossos dias, têm o mérito de criar uma relação cotidiana da família com Deus, renovando a Aliança a cada refeição: a família é igreja doméstica, lembrará o Concílio Vaticano II.
Todo este serviço cultual, que lançava raízes e dava sentido até ao dia a dia do Povo de Israel, era garantido, até a destruição do Templo de Herodes pelos romanos, pelos sacerdotes do clã de Aarão, o levita. No capítulo 8 há o ritual da consagração dos sacerdotes. Na Igreja, tanto no Oriente quanto no Ocidente, em toda parte onde se crê que a Ordenação é um Sacramento, também há o uso da unção e de vestes apropriadas. Fica expressa de modo visível a realidade da entrega a uma missão especial. Hoje falamos de “liturgia”, termo grego, que significa “serviço”. No caso, serviço do culto divino, com suas dimensões de cuidado com o povo, com a justiça, com a comunhão. Já estamos sendo preparados para a Lei da Santidade, cujo princípio básico se mantém valioso também para nós: “Sereis santos porque Eu sou Santo!”
Levítico: o “sagrado” e o “santo”
Normalmente, consideramos “sagrado” e “santo” como sinônimos. Assim o Sagrado Coração de Jesus é o Coração Santo. Quando o Livro do Levítico foi editado, o Povo de Israel retornava do cativeiro da Babilônia para reconstruir Jerusalém arrasada e toda a vida na pátria querida. O Livro do Ezequiel (Ez 40-48) como que estabelece um sistema de purificação baseado em áreas sagradas. O mérito desta tentativa é, sem dúvida, dar uma consciência da missão especial que cabe ao Povo Eleito, como servidor de Deus, o Senhor. O perigo é de que esta consciência se transforme em espírito de seita, de desprezo a tudo o que estiver fora destas áreas sagradas: o “profano”, o “impuro”.
Esta mentalidade se transforma facilmente em orgulho, em visão estreita, em esquecimento do motivo mesmo pelo qual Deus escolheu um povo: como semente de salvação para todos os povos! Os que se deixam encantar porque vivem em território sagrado se consideram únicos “donos da verdade”. Assim os egípcios e romanos, antigamente, os comunistas, nazistas e fascistas, no século passado, e muitos fundamentalistas atuais oprimem os “diferentes” e querem “convertê-los” ou sujeitá-los à força. Há fundamentalismos e fanatismos não só religiosos – e mesmo católicos – mas também políticos! O fundamentalista não consegue imaginar que alguém possa pensar ou viver de outro modo. Um fundamentalismo perigoso nos nossos dias é o “pensamento único” na mídia e na política, que desclassifica todos os outros modos de pensar como errados, antiquados ou deficientes. Há quem, em nome do pensamento científico, rejeite, por exemplo, a religião.
Mas Deus é o Santo, e nos quer santos: “Sede santos, porque Eu sou santo” (ver Lv 11,44; 19,2; 20,7; 20,26). O Santo busca tornar a vida saudável, honesta, boa. A santidade não conduz ao isolamento, mas ao respeito, ao serviço e ao diálogo. O santo tudo anima, sem destruir nada!
Num oráculo de Oséias (11,9), o Senhor Deus declara: “Eu sou Santo no meio de vocês”. O Santo, o Senhor, se coloca no meio de tudo e de todos, se faz próximo. Assim Jesus se fez carne e habitou entre nós. Assim,por exemplo, temos Jesus Sacramentado nas nossas igrejas. Deste e de muitos outros modos Ele está entre nós.
O Livro do Levítico tem um núcleo muito importante, que dá continuidade à revelação feita a Moisés: o chamado “Código da Santidade” (Lv 17-26). O culto ajuda a viver os mandamentos, a buscar a santidade!
Levítico: o Código da Santidade se ocupa da vida humana (Lv 17-26) – 1
Na legislação do Livro do Êxodo já encontramos a semente do Código da Santidade do Livro do Levítico. O mesmo Espírito vai educando o povo. Nem o que está escrito no Êxodo, no Levítico ou no Deuteronômio é a “última palavra”. A “última palavra”, a palavra definitiva é Jesus, o Verbo, a Palavra de Deus que se fez carne e habitou entre nós (ver Jo 1,1-14)!
Tomemos um exemplo do Êxodo, em que já podemos perceber o amor ao inimigo do Sermão da Montanha, e, também, podemos perceber com que se ocupa o Código da Santidade do Levítico e, mais tarde, os Profetas. Trata-se de alguém que encontra, perdido no deserto o jumento de um inimigo seu. O que manda a lei? “Tu o levarás a seu dono”. E se, no caminho, encontrar o jumento do inimigo arreado pelo peso da carga e o cansaço? “Não passes ao largo! Presta-lhe ajuda!” (ver Ex 23,4-5). Nos versículos anteriores (Ex 23,2-3) encontraremos um impulso de justiça verdadeira, que, até nossos dias, seria uma bênção para os humildes: “Não tomarás o partido dos poderosos para fazer o mal. Não farás declarações num processo, tomando o partido dos poderosos e violando o direito. Não favorecerás o poderoso em sua causa”.
Se quisermos ler com proveito o Código de Santidade do Levítico, temos de abrir os olhos para as condições de vida de um povo que ainda era de pastores. Normas sobre matar os animais, podem nos parecer sem interesse. Ou outras sobre as relações sexuais. Na verdade, o povo aprende a não viver “de qualquer jeito”, mas de um modo decente, regulado, democraticamente obrigado a todos. O Povo de Israel vai sendo educado a obedecer não aos caprichos dos poderosos, ao arbítrio das modas e ideologias, ou do que os cientistas de uma época pensam que é definitivo, mas a aceitar o governo impessoal da lei, igualando todos, e, assim, agradando e servindo a Deus.
Mas fácil será entender a decência na família (ver Lv 18,6-23): ninguém deve ter relações sexuais com parentes próximos (mãe, pai, irmãos, netos, tios, nora, cunhada…). Também não são aceitáveis relações com uma pessoa do povo, sem compromisso conjugal. O versículo 22 causa muita dificuldade nos nossos dias: “Não te deitarás (homem) com outro homem, como se ele fosse mulher. É uma abominação”.
Levítico: o Código da Santidade se ocupa da vida humana (Lv 17-26)
Um ponto que pode causar muita estranheza é a famosa “lei do talião”: “Fratura por fratura; olho por olho; dente por dente” (Lv 24,20). Ela, no entanto, representa um progresso enorme em relação à “lei de Lamec”: “Ada e Sila, escutai a minha voz, ó mulheres de Lamec! Ouvi o que digo! Matei um homem por uma ferida e um jovem por um arranhão. Sete vezes será vingado Caim, mas Lamec o será setenta e sete vezes” (Gn 4,23-24). Jesus, a última, perfeita e definitiva Palavra, vai reformar esta “contabilidade”: “Pedro se aproximou de Jesus e lhe perguntou: ‘Senhor, quantas vezes terei de perdoar meu irmão se ele pecar contra mim? Até sete vezes?’ E Jesus lhe respondeu: ‘Eu não te digo até sete vezes, mas até setenta vezes sete’” (Mt 18,21-22). De fato, a lei de Lamec continua vigorando: lembremos das chacinas “decretadas” no mundo do tráfico de drogas, por causa, por exemplo, do não pagamento de uma “encomenda”. E “lei de talião” permanece presente em todo o sistema de indenizações, reparações e multas nos nossos dias.
Uma palavra sobre a lei do ano de jubileu (ver Lv 25): não sabemos ao certo, mas os peritos acreditam que ela significa mais um ideal, representa uma tendência, do que tenha sido de fato aplicada. Se foi, isto quer dizer que a terra era de Deus e do seu Povo. Na verdade, não haveria uma propriedade privada do solo, mais um tipo de arrendamento provisório, para impedir a acumulação, a ganância e garantir a terra produtiva a quem nela trabalhava. Além disso, há uma determinação “ecológica”: a terra também precisa de um tempo de repouso!