Líbano
Uma mensagem de fraternidade em perigo entre tantos inimigos
A Jornada de oração mundial pelo Líbano querida pelo Papa Francisco, retoma a ideia de São João Paulo II sobre “o País dos Cedros”. Um século de história demonstra que esta mensagem de fraternidade se opõe a mitologias e ideologias.
RICCARDO CRISTIANO
La Stampa, Italia, Vatican Insider, 04 de setembro de 2020
A Jornada de oração e jejum
Quando convocou a Jornada de Oração e Jejum pelo Líbano, falando da proximidade aos sofrimentos da população, o Papa Francisco focalizou o drama vivido por milhões de libaneses, atualmente em aberta polêmica com a classe política, imersos como estão em uma crise econômica, que fez o dólar subir a 8000 liras libanesas, e não mais 1500 liras, na difusão devastadora da pandemia e na volta aos encontros armados: “Diante dos repetidos dramas que cada habitante desta terra tem sofrido, tomamos consciência do extremo perigo, que ameaça a própria existência do país. O Líbano não pode ser abandonado na solidão”.
O Papa Francisco anunciou a decisão de convocar uma Jornada de Oração e Jejum pelo Líbano, um mês após da terrível explosão que destruiu o porto de Beirute e de enviar à capital libanesa o Cardeal Parolin, Secretário de Estado, confirmando a especial atenção da Santa Sé ao pequeno país árabe, definido por São João Paulo II como “uma mensagem”. O mesmo Papa Francisco insistiu: “É profundamente verdadeira a afirmação de que o Líbano representa algo mais do que um país: o Líbano é uma mensagem de liberdade, um exemplo de pluralismo, tanto par ao Oriente quanto para o Ocidente. Para o bem do país, mas também do mundo, não podemos permitir que este patrimônio se perca.”
Para entender, porém, porque esta mensagem esteja de fato em perigo, não basta tomar distância de uma classe política, agora em crise de credibilidade. É preciso ainda se libertar de mil mitologias que envolvem o “País dos Cedros”, desde seu nascimento, há cem anos, em 1º de setembro de 1920. A mensagem do Líbano foi ofuscada desde o século XIX por narrativas mitológicas e ideológicas, a partir da que criaram quando da sua fundação os franceses: “o fenicianismo”.
A criação do atual Líbano
A ideia de criar um Estado libanês nasceu nos círculos franceses, empenhados na repartição dos territórios árabes, na época da desintegração do império otomano. Em torno da revista de estudos fenícios, fundada por Ernesto Renan e depois, pelo Padre jesuíta Henri Lammens, tomou corpo a ideia de criar, na área de predominância francesa, ao norte da assinalada ao colonialismo britânico, dois países: a Síria e o Líbano. As chaves deste seriam entregues aos cristãos. A mitologia fundadora, inspirada no Padre Lammens partia da ideia que o Lìbano, o antigo território dos fenícios, não teria sido povoado por árabes, mas pelos descendentes dos fenícios, que, no entanto, Heródoto dizia serem originários da Arábia Feliz.
O sentido político da constituição de um Lìbano soberano e independente vinha da geografia. Estes territórios montanhosos e cercado de amplos desertos sugeriam, na sua opinião, uma proteção divina, a oferta de “um refúgio das perseguições, obviamente árabes islâmicas. Mas convincente, o pai da historiografia libanesa, Kemal Saliba, viu nestas terras montanhosas um rfúgio sim, mas da penúria de água nas regiões desérticas vizinhas e nas perseguições bem articuladas, como as bizantinas, que não aceitavam novos dogmas de fé. A maioria dos cristãos libaneses escolheram este caminho, rejeitando os limites montanhosos do Pequeno Líbano e escolhendo os atuais, o Grande Líbano, que engloba os territórios onde eram mais difundidas a presença de comunidades islâmicas: sunitas e xiitas.
Para entender esta escolha, não se pode prescindir da verdadeira alma da identidade libanesa, a de sua capital, Beirute, Em contraste com o espírito reinante nas montanhas circunvizinhas, Beirute tinha sido no século XIX, uma autêntica cidade marítima, sem uma grande história até os inícios desse século. Beirute se tornou, com ajuda de importantes e numerosos grupos missionários católicos e protestantes primeiramente uma cidade e, depois, uma metrópole, em virtude de sua escolha fundada sobre “coligação”.
Esta cidade de poucos dezenas de milhares de moradores nos inícios do século XIX, graças à chegada de missionários, se tornou logo sede de importantes universidades, como a protestante Universidade Americana, e a Católica São José, dos jesuítas. Exatamente esta oportunidade de crescimento, aberta a todos, também aos muçulmanos, atraiu as populações em fuga das montanhas, descritas como “refúgio seguro”, nos relatos mitológicos, mas, de fato, lugar de ferozes combates entre cristãos, drusos, sunitas e xiitas. Esta escolha missionária de demonstrou contagiosa, e nasceu em Beirute a primeira escola islâmica aberta a estudantes, homens e mulheres, cristãos. Deste modo aumentaram sempre mais os que, fugindo das montanhas, escolhiam uma nova cidade Beirute.
Naqueles anos, um obscuro e arrogante empresário europeu, Edmon de Perthuis, obteve dos otomanos a concessão do porto e da construção de uma ferrovia, ligando Beirute a Damasco, atravessando as montanhas, onde, até 1860, se combateu ferozmente, com consequências nos anos seguintes. Destino compartilhado por Damasco, alicerçada na sua história militar de capital do Califa e lugar de integrismo religioso.
O papel de Beirute
Então, coube a Beirute plasmar o novo Líbano. Suas armas preferidas foram o telégrafo e os navios a vapor, que chegaram, quase ao mesmo tempo, nas praias do Mediterrâneo. Os métodos de autêntico patrão de Perthuis para expandir o porto e estabelecer a ferrovia determinaram uma outra inovação “beirutiana”: a sindicalização dos trabalhadores portuários, a escolha deles de envolver a população em suas reivindicações, através de folhetos, jornais e revistas. A vitória deles se tornou assim um novo sentido de serem cidadãos, a afirmação de seus direitos a afirmação de uma ideia de cidadania.
Era o tempo em que a Sublime Porta, o governo do Sultão otomano, tentava uma reforma constitucional interna e Beirute surgiu como uma petição de valor contemporâneo, como capital destas reformas, Esta reivindicação, na qual a cidade reclamava o estatuto de capital provincial no império otomano, foi assinada dos notáveis e intelectuais mais autorizados de todas as comunidades presentes na cidade: maronitas, ortodoxos, sunitas, judeus, drusos, todos unidos pediam investimentos e peso para sua cidade. Tudo isto se passou na primavera de 1860, enquanto que, nas montanhas ainda aconteciam guerras comunitárias.
Assim foi que Beirute se fez a alma do Grande Líbano, sua locomotiva. Somente ela podia ser a fundadora de uma cidade do Levante, na qual tantas identidades se reconhecessem numa cultura, tanto que foi nela que dois missionários cristãos, com ajuda de um intelectual islâmico, traduziram a Bíblia em árabe. A pa´giana mais comovente do Renascimento árabe, que permitiu tantas liturgias em árabe.
Quando o mundo árabe se dividiu entre regimes religiosos e nacionalistas, Beirute escolheu o caminho de ser uma grande cidade “ativamente neutra” nesta época emq eu se queria islamizar tudo ou nacionalizar tudo. Tornou-se a capital do livre pensamento árabe, rica de bancos, jornais, cafés literários, cinemas, comércio. A cidade estava pronta para se tornar uma nova metrópole.
O inovador curso de Beirute tinha falta ainda de um quadro importante: o dos xiitas. Comunidade discriminada pela e na história otomana, os xiitas permaneceram à margem também em Beirute, tanto que, quando ainda eles abandonaram os lugares de origem para vir à metrópole, seus bairros ficaram conhecidos como “o cinturão da miséria”. Esta é a história do atual sul de Beirute. O Grande Líbano, portanto, surgia com um problema que enfraquecia sua mensagem. Mas a mensagem era clara: no Oriente Médio entre o desafio entre pan-islamistas e pan-arabistas, ambos convencidos de estar em guerra com o resto do mundo, tido como mal e corrompido, esta mensagem, subitamente, chamou a si a cidadania, abertura para o mundo. Beirute, disse seu maior intelectual, Samir Kassir, se tornou rapidamente uma cidade árabe, mediterrânea, europeizda, com ferida xiita, que, contudo, ia sendo tratada. Era o que cuidavam de fazer o imã Musa Sadr e o conhecido bispo melquita, Gregório Haddad.
O verdadeiro inimigo do Líbano
Mas o verdadeiro inimigo do Líbano continuava aninhado nas mitologias velhas e novas, como o pan-arabismo, o pan-islamismo e aquele fenicianismo que levava muitos cristãos a não acreditarem na cidadania e não terem confiança. Assim, quando a chegada dos “fedaim” palestinos fez temre uma ruptura e uma militarização do confronto, o Líbano entrou em sua devastadora guerra civil, que durou quinze anos. O objeto da verdadeira disputa era Beirute, cidade promíscua, onde os adeptos do fenicianismo queriam uniformizar tudo em ruas tipo europeu e os pan-islamistas em bairros orientais. Eis porque a cidade saiu devastada do confronto e eis porque o grande empreendimento de refazer o Líbano como um país e não como um tumulto de comunidades em conflito coube a Hariri: reconstruir Beirute para retomar a mensagem unitária, a cultura levantina.
Os acordos de paz indicaram, corajosamente, o caminho: o Líbano escolhia, para ter um futuro, o encontro. A arquitrave desta visão foi a decisão de modificar o Parlamento, que não seri mais composto de 51% de cristãos, mas de 50% de cristãos e 50% de muçulmanos, independentemente do peso efetivo de suas respectivas comunidades. Conscientes de que para “viverem juntos” não bastaria deixar de se temerem ou se garantirem, mas também de confrontar-se e escolher, os pais do novo Líbano pensaram em criar também uma segunda Câmara, esta eleita não sobre a base confessional, mas partidária. Foi a nova potência ocupante, a Síria, que o impediu, na convicção de que seria mais fácil controlar o Líbano mantendo separadas as comunidades e tendo interlocução apenas com os potentados. Os partidos, com efeito, seriam interconfessionais e haveriam, por assim dizer, de embaralhar as cartas, fazendo emergir novos confrontos e novas convergências.
O Sínodo extraordinário para o Lìbano
Mas o grande passo adiante havia sido dado e chegara o tempo de reconstruir o motor, Beirute. Quando pouco tempo depois São João Paulo II convocou o Sínodo Extraordinário para o Líbano, Rafiq Hariri compreendeu que aquela seria a verdadeira oportunidade de reconstruir o país. Na mensagem aos libaneses de 1991, encontramos três frases cruciais. O objetivo, “uma autêntica purificação dos corações”, já anunciava o que se explicitaria no documento preparatório dos bispos, onde se escrevia que a Igreja tinha visto com dor seus filhos serem mortos, matarem e morrerem entre si. Para chegar a esta purificação, São João Paulo II decidia abrir as portas do Sínodo às outras Igrejas e aos muçulmanos.
Segundo Mohammad Sammak, um dos mais respeitados expoentes do Islã iluminado e, naquele tempo, muito próximo conselheiro de Rafiq Hirari, quando o Vaticano estendeu a personalidades do Islã libanês o convite à participação nos trabalhos sinodais, a reação foi de alegria, mas de surpresa na substância: “Agradecemos de coração, mas como poderíamos? Não somos cristãos!” Rafiq Hariri disse a Sammak que isto teria sido um erro drástico, Era necessário fazer de tudo para que o convite fosse entendido e acolhido. O trabalho de persuasão moral foi bem sucedido e o mesmo Sammak esteve entre os participantes e lembra que houve a possibilidade de comentar as propostas sinodais antes mesmo de sua definitiva formulação.
A visão de Hariri
Qual era a visão de Hariri? A mesma que constava no seu projeto de reconstrução de Beirute: uma obra coletiva, empreendimento comum, partilhada por todas as comunidades. Com efeito, o centro de Beirute reconstruído se tornou logo um espaço para todos, inclusive para os xiitas. Era este o lugar que Hariri teria reconstruído por si próprio. Este espaço poderia ter um sentido social apenas com plena compreensão do convite do Sínodo. O delito de Hariri, nem então nem agora, um fato apenas sectário, mas cultural. Quem o assassinou queria novamente eliminar Beirute e, de fato, em 2007, o palácio do Primeiro Ministro foi assediado, no mesmo limite do centro da cidade.
Ora, a explosão do início de agosto próximo passado, devastou o coração comercial de Beirute, o lugar de seu nascimento, contíguo ao centro da cidade como o edifício do Primeiro Ministro. Aguerra contar Beirute, cidade promíscua, segue feroz e quem interpretou o sentido desta violência foi o Patriarca Maronita, o Cardeal Bechara Boutros Raï. Sua proposta de voltar à “neutralidade ativa” do Líbano não foi acolhida em todo o seu valor cultural.
Não se pode imaginar refundar o Líbano pondo em crise o seu pacto básico: a divisão paritária de muçulmanos e cristãos, mesmo em nome de uma tripartição entre sunitas, xiitas e cristãos, que abriria as portas a um novo conflito. Antes o renascimento se vê na reforma de 1990, criando, de fato, uma democracia moderna, baseada sobre as garantias para as comunidades em um ramo do Parlamento, e direitos para os indivíduos noutro. Mas, para consegui-lo, como sempre insiste o Patriaraca Raï, é preciso antes de mais nada recriar o Estado, a casa comum dos cidadãos, único a poder declarar guerra e controlar as armas. A última mitologia, a da resistência, faz do Líbano um exportador de conflitos, com a produção de mísseis e a intervenção de milicianos em guerras alheias.
E é isto que destruiu, novamente, Beirute. Mas o Líbano ou encarna o espírito desta cidade cosmopolita, levantina, promíscua, ou não existirá, com sua classe política ancorada no velho tribalismo. O Líbano está em perigo, como disse o Papa Francisco, por sua essência, sua mensagem, é a fraternidade: filhos e filhas diversos do mesmo Pai, como cidadãos da mediterrânea Beirute.