O cântico de paz
de “A vida de Cristo” de Peres de Urbel, Ed. Quadrante / SP
A notícia não deixava de ser estranha: o Messias, que Israel aguardava, o descendente de Davi, o restaurador do seu trono, jazia recostado no feno duma caverna. “Tirai-me estes panos vergonhosos e essa manjedoura, indignos do Deus que adoro” – dirá Marcião, um dos primeiros hereges. E Tertuliano lhe responderá: “Nada mais digno de Deus que salva o ser humano e espezinhar as grandezas transitórias, julgando-as indignas de Si e dos humanos”.
Não era aos poderosos da terra, não era aos doutores do Templo que a mensagem se dirigia, mas aos pobres pastores do deserto, gente desprezível e suspeita aos olhos dos escribas, que os excluíam dos tribunais e recusavam seu depoimento nos julgamentos, e tinham inventado este provérbio depreciativo: “Não deixes que teu filho seja guardador de burros, condutor de camelos, vendedor ambulante ou pastor, porque são ofícios de ladrões”.
Como seria possível submeter estas pessoas andarilhas, que, acima de tudo, precisava pensar em viver, às mil prescrições que complicavam a Lei? Mas a vida de Cristo aparece impregnada, desde o começo, de uma profunda ironia contra os sábios e poderosos. Quando ele começar sua atividade missionária, dará como signo de sua missão divina, a evangelização dos pobres. E eis que, mal acabado de nascer, já os pobres são evangelizados! E os pobres compreenderam e acreditaram: acreditaram que o Messias nascera.
Logo repararam que o mensageiro não estava só: rodeava-o um coro de espíritos resplandecentes, cantando o hino cujo eco ressoa em todas as igrejas do mundo: “Glória a Deus nas alturas e paz na terra àqueles que ele ama”. Esta é a novidade prodigiosa: a paz. Cristo quis nascer num momento assinalado pela paz, que as 25 legiões romanas mantinham em todas as fronteiras do império. Mas, a paz que ele trazia era muito mais profunda e duradoura. Era a paz que unia o ser humano com Deus, paz que havia de tornar felizes as almas que, pelos seu atos, se tornassem dignas do bem querer divino. Aí temos a tradução exata da palavra que Lucas usa: “Paz na terra aos homens de beneplácito”.
Maravilhados por este concerto extraordinário, os pastores olhavam para o alto e, quando os últimos ecos se perderam à distância, puseram-se, decididos, a caminho: “Vamos a Belém e vejamos este prodígio que o Senhor nos anuncia”. Esta cena segue-se imediatamente ao relato do nascimento de Jesus, e o Evangelista as junta, sem dúvida, pra nos dar a entender que entre os dois fatos não se passou sequer uma hora. Por isso, a tradição supôs, com razão, que o nascimento de Jesus se deu à noite, tal como a aparição aos pastores.