Contemplativos/as na ação
R. Paiva, SJ
A Igreja tem conhecido, ao longo de sua milenar história, muitas e muitas pessoas “contemplativas na ação”. Mas esta expressão não estava “na moda”, e por isso não é fácil encontrar bibliografia a este respeito.
Mas o fato, para o qual ela aponta é bem reconhecido. Por exemplo: na “Introducción General”, que o notável Padre Ignacio Iparraguirre, SJ, faz na “Edicción Manual” das “Obras Completas de San Ignacio de Loyola”, BAC, Madrid, MCMLXIII, lemos (p. 305):
“Esta era a vida que levava Santo Inácio nos momentos em que se sentia inundado das mais altas comunicações celestiais e anotava cuidadosamente a abundância ou escassez de lágrimas experimentadas na Missa. Soube ser um verdadeiro contemplativo em meio a uma ação intensa, em um ambiente sobrecarregado de trabalho e de preocupações, que, como escreve o já citado Doménech, por seu muito trabalho nem sempre podia satisfazer as solicitações que lhe chegavam: ‘Acontece-lhe, algumas vezes, desde a manhã, até à tarde, ocupar-se em confissões, sem tomar nenhuma refeição corporal”.
O Padre Giles Cusson, SJ, na sua obra mestra, “Conduzi-me pelo caminho da eternidade” (Edições Loyola / SP, 1976, pp 137-138), escreve:
“A oração não é considerada somente aqui como expressão normal de nossa relação com Deus, da vida desta relação – o que basta só por si para afirmar sua absoluta necessidade para o prosseguimento da experiência espiritual vivida. Tem ela, a mais, uma estrita conexão com o objeto definido de nossa reflexão: aprender a viver no Espírito, a perceber a sua ação no cotidiano de nossa existência.
(…)
Dá-se, com frequência, que pessoas, nas quais a síntese entre ação e contemplação deixou de se realizar, opõem à ação apostólica e a prática da caridade a formas mais estritas de oração. Não creio que isto crie dificuldade para quem aprendeu a viver de Deus em tudo, a alcançá-lo, a encontrá-lo e serví-lo em tudo, a estar com Ele em tudo. Vai nisso uma união constante, mais ou menos explícita, que cria, progressivamente um “estado de oração”. Ora, este estado, que está muito longe se ser passivo, transborda de desejos de encontrar a Deus em si mesmo, desejos que só em parte poderão satisfazer os tempos de oração pessoal e comunitária, face a face dos tempos de pausa, absolutamente indispensáveis à vida, ao amor, à amizade… Quem vive neste clima interior de união e de oração será facilmente sensível aos sinais do Espírito. E, se isto representa a morte possível de certo espírito calculista, que todo legalismo entretém relativamente à oração formal, não é, de modo algum, a da oração, mesmo formal, que ganha em liberdade e profundidade para o maior bem de quem ora, consciente de sua pobreza e inteiramente entregue a Deus”.
Portanto, embora também Cusson não fale de “contemplativos na ação, o que ele nos faz refletir sobre a vida no Espírito, que já encontramos referida em São Paulo (ver, por exemplo Rm 8) nos explica muito bem do que se trata. Há quem reza habitualmente por formalismo. Mas não percebe, no dia a dia, os apelos de Deus, os sinais do Espírito.
Em 19 de outubro de 1997, São João Paulo II, na carta apostólica “Divini Amoris Scientia”, proclamou Santa Teresinha do Menino Jesus como Doutora da Igreja. Recordemos que ela morreu com apenas 24 anos e não estudou Teologia, nem tinha o que nós chamamos de “formação superior”, nem mesmo “2º grau”. Somente 4 mulheres receberam esta honra: ela própria e mais Santa Teresa d’Ávila, Santa Catarina de Sena e Santa Hidelgarda de Bingen. Além disto, o Catecismo da Igreja Católica, apresenta uma definição sua sobre a oração, na abertura da Quarta Parte, “A Oração Cristã”: “Para mim, a oração é um impulso do coração, é um simples olhar lançado para o céu, um grito de reconhecimento e amor no meio da provação e no meio da alegria” (no. 2558). Santa Teresinha, nas suas obras, não fala de “contemplativos na ação”, mas abre a obra que é mais conhecida como “História de uma Alma”, com a parábola da “florzinha branca”, nascendo no muro do jardim do convento, que ninguém tinha plantado, e da qual ninguém entre as Irmãs do Carmelo conhecia o nome, mas que céus e terra se moviam para que ela existisse. Quem quiser saber mais, leia as primeiras páginas desta obra prima da espiritualidade cristã. Vale a pena!
Do nosso ponto de vista, o importante é que, para Santa Teresinha, flores discretas falavam de Deus, e não só rosas. Os acontecimentos da vida, como o barulho irritante que uma freira fazia com seu rosário durante o tempo da contemplação, ou a doença do pai, hoje canonizado com a esposa, também falavam de Deus e de Sua providência. Isto é ser “contemplativa na ação”. Nos seus Exercícios Espirituais, Santo Inácio de Loyola escreveu (EE 236-237):
“Considerar como Deus trabalha e age por minha causa em todas as coisas criadas sobre a face da terra, isto é, como procede à maneira de quem trabalha. E isso nos céus, nos elementos, plantas, frutos, rebanhos, etc., dando o ser, a conservação, a vegetação, a sensação, etc. Depois, refletir sobre mim mesmo. Olhar como todos os bens e dons descem do alto (…) tais como do sol descem os raios, da fonte, as águas, etc.”.
Como alguns resumem: os contemplativos na açã “veem em tudo Deus e Deus em tudo”.
No pequeno livro “A força da metodologia nos Exercícios Espirituais”, obra a equipe do então CEI-ITAICI (Loyola/SP 2002), nos números de 101 a 106, encontramos parágrafos que ajudam muito a perceber como, uma vida de oração com discernimento, em que se olha a própria vida à luz da vida de Cristo, pode dar ao orante um quotidiano cheio de percepção das moções do Espírito, de suas inspirações e apelos. Algumas citações:
• O fruto da “contemplação para alcançar o amor” (EE 230-236) é abrir o caminho para a oração quotidiana da pessoa, já ordenada em seus afetos, centrada em Cristo e desposta ao seguimento quotidiano. Buscando e encontrando a Deus em todas as coisas, o/a exercitante estará apto para ser contemplativo/a na ação.
• O/a exercitante se prepara para perceber neste mundo a ação do Ressuscitado, como Deus, que trabalha sempre, com amor gratuito, o que leva a uma resposta agradecida de amor, que consiste mais em obras do que em palavras.
• Na contemplação da pessoa de Jesus, (o exercitante) aprendeu a ver nas coisas e nas outras pessoas sacramentos do próprio Deus Uno e Trino.
• Aqui o olhar interior volta-se para Deus, como fonte de todos os bens.
• Assim, quem obtém o fruto deste exercício (da contemplação para alcançar amor), fica aberto/a para acolher aos moções do bom espírito, sendo gente para os demais e com os demais.
Juiz de Fora, 4 de maio de 2020
Memória de São José Maria Rúbio, SJ
O Apóstolo de Madri.
A.M.D.G.