COGUMELOS, MÚSICA E SILÊNCIO
Cardeal Tolentino
A NOVIDADE DO CONTRIBUTO CULTURAL TRAZIDO POR CAGE NASCEU DO ESFORÇO PARA PENSAR FORA DAS DICOTOMIAS DO PENSAMENTO OCIDENTAL, DEMONSTRANDO COMO A COEXISTÊNCIA DOS OPOSTOS NÃO INTERROMPE O SENTIDO
Os cogumelos, a música e o silêncio têm duas coisas em comum. A primeira delas está associada à sua natureza: crescem fora das estradas principais, são favorecidos pelo recolhimento dos bosques, amam a alternância das estações. A segunda coisa que têm em comum é terem sido objeto da igual paixão de um dos criadores mais originais do século XX: o compositor John Cage. A novidade do contributo cultural trazido por Cage nasceu do esforço para pensar fora das dicotomias do pensamento ocidental, demonstrando como a coexistência dos opostos não interrompe o sentido, antes o revela no seu carácter paradoxal, que temos de aprender a aceitar melhor. A testemunhá-lo está, por exemplo, o fato de as suas explorações acerca do silêncio se terem tornado determinantes para o tipo de música que fazia.
A muitos desconcertou que ele tenha ousado apresentar experiências de silêncio ininterrupto como legítimas peças musicais (assim o fez com as composições “Silent Prayer” e “4’33’’”). Mas para John Cage não havia nisso qualquer contradição, e explicava-o assim: “A música é inútil, a menos que desenvolva a nossa capacidade de escuta. O silêncio não é acústico, é uma mudança de mentalidade.” A obra artística de Cage ajudou a questionar o que é a música e a verificar que esta é indissociável da compreensão do silêncio entendido não como ausência mas como forma alternativa de construção sonora.
O silêncio é tão sonoro como a música, mas pede de nós uma mudança de atitude: a valorização da continuidade que existe entre arte e vida
Um momento de viragem foi a experiência na câmara anecoica da Universidade de Harvard, uma história que Cage recontou inúmeras vezes. Entrando nessa sala à prova de som, onde supostamente poderia testar o absoluto silêncio, ele escutou então um som grave (o do seu próprio sangue em circulação) e um agudo (o do seu sistema nervoso a operar). Até aí estava convencido de que o silêncio real existia como qualquer coisa que podemos produzir pela eliminação dos sons. Na câmara anecoica, porém, percebeu que não existe o silêncio como produção nossa. Mas ocorre isto: enquanto a música ou a palavra representam sons intencionais que realizamos, o que nós chamamos de silêncio é a possibilidade de acedermos à escuta dos sons e das realidades não intencionais. O silêncio é tão sonoro como a música e tão loquaz como a palavra, mas pede de nós uma mudança de atitude: a valorização da continuidade que existe entre espaço intencional e não intencional, entre sujeito e objeto, entre arte e vida.
Nos anos da Grande Depressão, quando os alimentos escasseavam, Cage começou a frequentar os bosques em busca de cogumelos, tornando-se com o tempo um especialista na matéria, a que recorriam restaurantes importantes de Nova Iorque. Parece uma insólita deriva, que nada tem a ver com a sua arte, mas a verdade é que o método permanecia o mesmo: na sua errância pelos bosques, inesperadamente o desconhecido manifestava-se.
E há um episódio televisivo a este propósito. Em 1959, um obscuro músico americano de nome John Cage participa em Itália num desses concursos banais da TV, com duas intervenções musicais e como concorrente a um prémio de cinco milhões de liras. A música deixou apresentador e auditório aturdidos, mas quando começou o concurso propriamente dito, que tinha como tema da sessão os cogumelos, o espanto não foi menor, pois o excêntrico concorrente era capaz de elencar por ordem alfabética dezenas de espécies. No final, o apresentador, felicitando-o, perguntou-lhe se voltaria para a América. Cage respondeu que sim, mas que a sua música ficava. O apresentador retorquiu: “Que pena. Seria melhor que a sua música partisse e que você permanecesse conosco.”