O Livro do Êxodo
No tempo de Ramsés II…
Mesmo que alguém more na boca de um rio e nunca tenha viajado por ele até a montanha onde ele nasce, nunca duvidará da existência do rio e da nascente. Durante milênios da história, não se conheciam as nascentes do Nilo, de cujas águas abençoadas viviam o Faraó, seus súditos bem alimentados, como também seus “hóspedes” hebreus, os descendentes de Jacó. Mas nunca se duvidou de que procurando bem, as nascentes do poderoso rio egípcio seriam encontradas, como foram já no século 19!
Mesmo que não conheçamos bem o cenário do Êxodo e suas circunstâncias exatas, por exemplo, o trajeto dos fugitivos pelo deserto do Sinai afora, isto não é motivo para duvidarmos do acontecimento do qual nasceu Israel. Martin Noth, um estudioso alemão reconheceu: “O Senhor nos fez sair do Egito é a confissão original da fé de Israel” *.
Segundo a tradição posta por escrito por um redator anônimo, muito tempo depois dos acontecimentos, e que usou três fontes antigas para sua obra. Este redator não tinha o mesmo interesse que nós em “fatos históricos”: ele recordava estes fatos com a intenção de animar seu povo a perseverar na celebração da Páscoa, crendo no Deus libertador, naquele tempo, nas dificuldades e lutas presentes e também em qualquer crise futura.
Então, nosso redator nos apresenta uma família dos hebreus perseguidos. Era, possivelmente, o tempo do grande Faraó Ramsés II e do seu filho e sucessor, Merneptah. Silenciando o nome do faraó, o autor do livro está nos dizendo que não importa: qualquer “faraó” deste mundo não pode impedir a caminhada do povo de Deus e a história da salvação. Mas foi em um momento difícil, provavelmente no final de seu longo reinado de 67 anos que tudo aconteceu. E um menino foi salvo das águas!
* Citado por Gianafranco Ravasi, em “A Narrativa do Céu”, Edições Paulinas / SP, 1999, p. 92-93.
O menino salvo das águas
Na beira do Nilo, que vai se espraiando para formar o seu delta – a foz de muitos braços pela qual joga suas águas no mar Mediterrâneo – há lugares bons para tomar banho, e também bonitas moitas de papiro.
Um homem da tribo de Levi casou-se. Foram os dois abençoados com o nascimento de um garoto robusto e bonito. Bonito pelo menos, aos olhos dos pais amorosos! Por três meses, esconderam o nascimento, cuidando do bebê no maior segredo, para evitar que os guardas do faraó viessem e o matassem.
Não sabemos se o povo hebreu daqueles tempos já cantava o Salmo 18: “Já me recobriam as ondas da morte, as torrentes de Belial (torrentes infernais!) já me engoliam (…). Invoquei ao Senhor na minha angústia, e para meu Deus clamei com toda a força! Ele ouviu minha voz, de seu templo celeste, e meu forte clamor lhe chegou aos ouvidos”. Mesmo que os pais do hebreuzinho não conhecessem este salmo, certamente rezaram de coração pela sua vida.
Os contadores de histórias de Israel fizeram chegar até os redatores do Livro do Êxodo, e estes nos transmitiram que, “não podendo esconder o menino por mais tempo”, a mãezinha “tomou uma cesta de vime, calafetou-a com betume e piche, e a depositou entre os caniços, junto às margens do Nilo”. Foi então que a Providência de Deus se manifestou de um modo surpreendente: a filha do faraó com suas servidoras e amigas foi banhar-se nas águas do rio. Uma das escravas, passeando, viu a cestinha, ouviu o chorinho da criança, e a recolheu, levando-a a sua senhora. Quem disse que não há bondade no mundo? A princesa, comovida, o adotou (Ex 2,1-10). Como se reza no Salmo 18: “Salve, ó Senhor que nos governas! Tu nos respondes no dia em que Te invocamos!”.
Deixemos os pormenores desta bonita história. O menino cresceu na corte do faraó, mas soube de sua origem hebraica e não a renegou. Um dia, viu um compatriota ser maltratado por um guarda do faraó, tomou sua defesa e, na luta, matou o soldado. Com medo das consequências, fugiu para o deserto, ficou convivendo numa tribo de pastores, sob a proteção do seu sogro, Jetro (mas que é chamado também por outros nomes). Um dia, guardando os rebanhos, viu um fenômeno estranho! Um espinheiro ardia, enorme fogueira, sem se consumir em cinzas!
Moisés é chamado e enviado! (Ex 3,1-12)
A esmagadora maioria de todos os seres humanos, desde o tempo dos Faraós, nunca esteve no deserto do Sinai. Com toda certeza os anônimos redatores das tradições do espantoso êxodo do povo no Egito não viram o espinheiro (a sarça) arder sem se consumir, sem virar cinzas!
Nada impede um milagre. Ninguém pode provar que aconteceu ou não aconteceu. Não podemos negar, que este fogo que queima sem destruir, lembra – na linguagem bíblica – o fogo de vida e amor que fez arder os corações dos discípulos de Emaús (Lc 24,32). Ou o fogo da comparação de São Paulo: “Se alguém constrói sobre este Fundamento (Cristo!) com ouro, prata, pedras preciosas, feno ou palha, a obra de cada um vai se tornar manifesta. O Dia (do Senhor) a fará conhecer, porque virá com fogo, e o fogo comprovará a qualidade da obra de cada qual. Se a obra que alguém construiu sobre este alicerce resistir, ele receberá uma recompensa. Se a sua obra se consumir, sofrerá a sua perda. Ele, contudo, será salvo, mas como através do fogo” (1Cor 3,12-15). Portanto, é um “fogo” que não destrói, mas, amorosamente, limpa o que não tem valor.
Mas não podemos explicar o Êxodo sem a figura de Moisés. E não podemos explicar Israel sem o Êxodo. Toda a verdade de Israel se apoia nisto: “O Senhor nos fez sair do Egito!”.
No deserto, Moisés, já homem feito, casado, se viu chamado. Não duvidou, mas, apesar de seus temores, exprimidos em oração sincera para o Senhor (Ex 3,11), voltou para o Egito, para o confronto com o poder do Faraó. Outro poder maior, poder de amor, se levantava: “Eu vi, eu vi a aflição do meu povo no Egito!” (Ex 3,7).
Os deuses daqueles tempos e lugares eram ligados aos reis das nações. Este Deus Vivo e Verdadeiro é diferente: Ele está do lado dos oprimidos! “Desci para libertá-lo” (Ex 3,8).
O Nome divino (Ex 3,13-15)
Deus se manifesta a Moisés não como uma estátua a ser adorada, imóvel em sua dignidade morta. Ele é Vida, é Ação. Seu nome não é um “nome”, um “substantivo”. Surpreendentemente, seu Nome é um verbo: Javé significa “Aquele que é”; ou melhor: “Eu Sou”! Ele o Deus dos Pais: Abraão, Isaac, Jacó. Ele vê o povo angustiado pelas opressões que se multiplicam. Ele “desce” para libertá-lo e “fazê-lo subir desse país (do Egito) para uma terra boa”. Assim Ele nos preparava para Seu Único, Jesus, Filho do Altíssimo, que veio do Pai e volta ao Pai, arrebatando consigo nossa humanidade! Maravilha! Deus é Amor!
Jesus o entende muito bem. No começo da evangelização, na sinagoga de Nazaré, Ele declara: “O Espírito do Senhor está sobre mim, porque Ele me consagrou com o óleo para levar a Boa Nova aos pobres. Enviou-me para proclamar aos prisioneiros a libertação, aos cegos a recuperação da vista, dar liberdade aos oprimidos e proclamar o Ano de Graça do Senhor (…). Hoje, se cumpre esta passagem da Escritura…” (Lc 4,16-21). Em Jesus é verdade o que o povo diz: “Tal Pai, tal Filho!”. E Jesus, que pregou como quem tinha a autoridade divina, não hesitou em usar como Seu o Nome Divino. Diante do Sinédrio, afirmou: “Eu Sou!”. Por isso o sumo sacerdote rasgou as vestes em sinal de luto e gritou: “Blasfemou!” (ver Mc 14,61-65).
Sempre houve quem duvidasse que Jesus, o humilde carpinteiro de Nazaré, fosse “Deus conosco”. Mas seus inimigos reconheciam que ele reclamava igualdade com o Pai, a divindade: “Jesus os censurou: ‘Eu vos mostrei muitas obras, vindas da parte do Pai. Por qual delas quereis apedrejar-me?’. Responderam: ‘Por nenhuma obra (…), mas por causa da blasfêmia, porque não sendo mais que um homem, pretendes tornar-te Deus’…” (Jo 10,32-33).
Porque, no deserto, o Senhor se revelou a Moisés como Deus Libertador, Deus amor ao pobre e oprimido, Deus misericordioso, o mundo começou de novo! Estamos todos em tempo de Páscoa, Passagem, Êxodo, Libertação.
Moisés tem de entrar em conflito (Ex 4)
Uma vez Jesus iria nos dizer que nos enviava como ovelhas para o meio de lobos (Mt 10,16). Quem quer evitar conflito, nem tente servir ao Deus de Abraão, Isaac e Jacó. E o que Ele nos oferece é o apoio na luta, que nós mesmos de travar: a vida é dom feito a nós, e somente nós podemos vivê-la! Mas Ele se faz Deus conosco, quando o aceitamos.
Não quer dizer que Ele se propõe a manipular os que o acolhem na fé, transformando-os em bonecos! Ele se propõe como nosso aliado. Não nos dispensa de assumir responsabilidades, mas nos ajuda a assumi-las. Esta é a lição que Moisés vai aprender às próprias custas: Deus o chama para ganhar a vida com o suor do próprio rosto (Gn 3,19). O Pai do Céu não é como estes pais da terra, que, em nome de um amor, que é moeda falsa, mimam a mais não poder seus filhos e os estragam irremediavelmente. Em outras palavras, a história do Êxodo, embora maravilhosa aos olhos dos narradores e dos redatores (muitos séculos depois), não é estória do país de fadas, mas de uma luta pela liberdade.
Como alguém justamente escreveu, que esta história do Êxodo, mesmo com seus quadros mágicos, não é uma lenda que um povo inventaria! É a lembrança de uma escravidão humilhante e de uma libertação sofrida, realizada numa caminhada penosa, mas amparada pela mão de Deus. Os acontecimentos, que serão narrados como a viagem real de Vasco da Gama de Lisboa à Índia, “por mares nunca dantes navegados”, com tons gloriosos e épicos, são a ossatura forte do que de fato se passou.
Moisés se mostrou relutante, ali, solitário, diante de uma vocação que o afastava de uma vida tão ajustada de pastor, genro do rei pastor, Jetro, e o devolvia ao cenário de sua juventude turbulenta, ao Egito. Os prodígios do bastão que se muda em cobra, e volta a ser o velho bastão de costume, simboliza que, atrás de sua realidade banal, há uma força maior. Sua mão, tingida do asqueroso branco da lepra, que volta ao normal, significa que Deus toma partido não do Faraó, mas dos excluídos e desprezados como escravos sem valor pelo mesmo Faraó.
Moisés vê o Senhor abrir horizontes para o povo oprimido (Ex 3,16-20)
As certezas da vida só nascem quando as intuições dão certo e viram fatos cientificamente comprovados. Promessas e profecias só têm “certificado de origem”, quando se cumprem (Ez 12,21-25).
Sozinho, de pé diante de um espinheiro que ardia, recebendo a revelação de um nome, que era verbo, Moisés ficou sem saber o que pensar. Ainda mais que lhe foi anunciado um futuro de sonho: o povo ficaria livre do Faraó, sairia da opressão e ganharia uma Terra Prometida, onde haveria leite e mel. Não seria uma terra dada “de mão beijada”. Ocupada por vários povos, cultivada, com cidadelas muradas, onde governavam pequenos reis, também não era uma terra da qual Moisés não tivesse notícia. Afinal o país que hoje chamamos “Terra Santa”, pagava imposto ao Faraó. O comércio de caravanas era intenso, pela orla do Mediterrâneo, entre Gaza e o delta do Nilo. Além disso, Moisés já conhecia as memórias de sua gente, do ciclo de histórias, em torno de personagens centrais, como Abraão, Jacó – Israel e Isaac.
Outra promessa se não deixou Moisés espantado, ele hoje faz a multidão de estudiosos dos textos bíblicos levantar outra multidão de hipóteses: os egípcios deixariam os hebreus partirem com suas posses: E farei que este povo encontre graça junto aos egípcios, a fim de que, ao partirdes, não saiais com mãos vazias” (Ex 3,21). È proposta uma hipótese: os redatores do texto se defrontaram com duas antigas tradições orais. Uma, pró egípcia, guardaria lembrança de um momento político como no tempo dos faraós nacionalistas, a rainha Hashepsowe e do seu marido e sucesso Tutmósis II, que teriam querido livra o solo egípcio de estrangeiros, e facilitaram um êxodo voluntário, como as modernas “demissões voluntárias”. A segunda memória, anti-egípcia, recordava o êxodo fuga, depois de um longo período de atrito… O fato, que Moisés não podia ter certeza naquele momento, era que a Terra Prometida seria, de fato, um lar para seu povo.
“O bastão maravilhoso” (Ex 4,20)
Antes de cantarmos com o bando de escravos fugitivos, o hino heróico da vitoriosa fuga, vamos olhar o maravilhoso bastão ou cajado nas mãos de Moisés. Quando Moisés se decidiu obedecer e voltar ao Egito, depois do seu encontro vocacional com o Senhor (Ex 3,3), diz nosso relato: “Moisés tomou sua mulher e seus filhos e os fez montar em asnos e dirigiu-se ao Egito. Na mão levava seu bastão maravilhoso” (Ex 3,20).
Ora, o bastão de Moisés era simplesmente o seu cajado de pastor! Este bastão “maravilhoso” retorna no capítulo 7 do Livro do Êxodo: atirado diante do Faraó se transformou numa serpente. A maravilha não pareceu muita coisa, porque os bastões dos mágicos da corte também se transformaram em serpentes. Só que o “bastão – serpente” de Moisés engoliu os outros “bastões – serpentes” dos mágicos: “E o Faraó teimou e não lhes deu atenção (a Moisés e Aarão), conforme o Senhor havia anunciado” (Ex 7,9-13).
Moisés tinha sido educado na corte e conhecia seus mitos e ritos. Mas o caminho “mágico” não deu certo! A libertação não chegaria por este campeonato de maravilhas, banais aos olhos de um poder habituado a manipulá-las e a se divertir com elas. O Êxodo aconteceu, sim, mas aproveitando um momento de crise do império egípcio, e não por uma estrada real, mas pela restinga de areia entre lagunas de juncos e o mar. O bastão maravilhoso se ergueu para dar sinal ao povo de que o vento leste, soprando a noite toda, tinha aberto a passagem para o cortejo de fugitivos (Ex 14,21-23). Mas não era nenhuma magia sua que causava a libertação e sim o sopro impetuoso do Deus dos vivos, que se manifestava a favor dos oprimidos contra os poderosos deste mundo. Israel passou e até hoje testemunha os prodígios de Deus, apesar de vacilações e pecados (ver Salmo 77/78). Os egípcios ficaram com suas múmias e pirâmides na poeira da história humana.
As pragas (Ex 7,14-12,30)
O Livro do Êxodo é composto de memórias históricas, segundo a narrativa oral que os conservou; textos jurídicos, litúrgicos e mesmo poéticos! Seu redator empregou materiais diferentes, trazidos por uma fiel tradição que, para se conservar, recorria a esquemas. Há peritos que pensam que este redator reuniu relatos e até documentos de três fontes diversas: em uma delas as pragas seriam apenas cinco; em outra, sete; na que predominou, dez. As dez pragas são: o Nilo, o grande rio, pai do Egito, que livrava aquele país de ser um prolongamento do grande deserto do Saara, se tornou vermelho sangue; a infestação de rãs e moscas; a peste dos animais; tempestade de granizo; gafanhotos; escuridão e, finalmente, o terrível golpe da morte dos filhos mais velhos dos egípcios.
Há quem nos recorde que estas pragas correspondem a fenômenos naturais, verificados no vale do Nilo. Sempre fica sem explicar a última e decisiva praga, que dobrou a vontade do Faraó anônimo do Êxodo: a morte dos primogênitos e só eles. Na verdade, estas nos lembram que sem um período de excepcionais sofrimentos do império egípcio, não seria fácil conseguir levar uma certa quantidade de mão de obra barata para fora das fronteiras.
Imaginemos um período prolongado de seca nas montanhas da Etiópia: as águas do Nilo baixam perigosamente, as águas vermelhas de algas dos pântanos em seu curso pelo Sudão, as tornavam venenosas para peixes. Assim estão explicadas as moscas, rãs pulando para aldeias e cidades, doenças para o povo mal alimentado, tudo piorado por granizo e pelo terrível simum, escurecendo o céu com as areias dos desertos. Abalado o poder do faraó, Moisés obteve, enfim, a licença de partir!
Mesmo assim, continua difícil explicar a morte dos primogênitos e o conjunto todo sem aderir ao que o livro do Êxodo e a fé de Israel sempre afirmou: o braço de Deus se estendeu poderoso e abriu caminho para a liberdade do seu Povo Eleito. Não podemos entender Israel sem o Êxodo e o Êxodo sem a intervenção do Senhor Deus.
Milagres no Êxodo
Um pequeno povo como o povo judeu de hoje (talvez não cheguem a 10 milhões! Mais ou menos a população da cidade de São Paulo!), muito menor no tempo da saída do Egito, sobreviveu até nossos dias, enquanto outros povos numerosos, aguerridos, donos de consideráveis recursos, desapareceram no correr dos tempos. É ou não um milagre? Eles ultrapassaram os anos do deserto, antes de se infiltraram com muitas lutas e trabalhos na Terra Prometida, que hoje chamam de “Terra de Israel”. Podemos criticá-los, se afirmam ser esta uma obra da Mão de Deus?
Na verdade, espontaneamente imaginamos que só podemos “ver a Mão de Deus” em atos mágicos (embora não acreditemos nos truques!). A fé judeu-cristã, contudo, vê a ação da Providência de outro modo, como aprendemos com seus sábios. No Livro do Eclesiástico (ou Siracida), lemos: “Presta ao médico a devida honra, porque dele precisas: foi o Senhor também quem o criou. É do Altíssimo, com efeito, que vem a cura, e ele (o médico) recebe presentes do próprio rei (…) O Senhor faz sair da terra os medicamentos (…). Não foi um pedaço de madeira que tornou doces as águas (em Mara!), manifestando assim sua virtude? Foi Deus quem deu aos homens a ciência, para que se glorifiquem pelos prodígios do Senhor. Pelos medicamentos se realiza a cura e a dor desaparece. Com eles o farmacêutico prepara diversas misturas. Assim as obras de Deus não ficam inacabadas e o bem estar se espalha sobre a terra. Meu filho, quando estiveres doente, não descuides, mas roga ao Senhor e Ele te curará. Evita tuas faltas, eleva tuas mãos, purifica o coração de todo pecado (…). Depois, dá entrada ao médico: o Senhor o criou” (Eclo 38,1-15)…
Em resumo: o que fazemos de nossa parte, o que descobrimos, o que a mãe natureza nos dá, tudo isto é bem, tudo isto é dom de Deus, que criou um jardim e o deu a nós para ser cultivado e bem aproveitado (Gn 2,5 e 15). Sim, o maná, a água de beber, as codornas são milagres! O povo do Êxodo não deixou a obra de Deus inacabada!
Passagem! Páscoa! (Ex 12)
Muito antes de que o Livro do Êxodo tomasse a forma que conhecemos, o povo hebreu celebrava sua Páscoa, cantava sua Páscoa e narrava, de geração a geração, a sua Páscoa! No meio de narrativas sem datação clara – coisa desimportante naquelas eras, surge uma data no texto bíblico: “Este mês será para vós o principal dos meses. Para vós será o primeiro dos meses do ano. Falai assim a toda a comunidade de Israel… O cordeiro será guardado até o décimo quarto dia deste mês… Naquela noite comerão da sua carne assada… Nada ficará dele até a manhã… Durante sete dias comereis pães sem fermento (ázimos). Desde o primeiro dia, tirareis todo fermento de vossas casas… no primeiro mês, no dia quatorze do mês, à tarde (…) até a tarde do dia 21 do mesmo mês…” (Ex 12,2-18).
No antigo Israel, este mês era o mês de “Abib” (depois chamado com a palavra caldaica “Nizã”), isto é, o mês “das Espigas”, quando chegava o tempo da colheita. Era uma festa antiga: para os lavradores, tratava-se de deixar de fora o fermento velho para não prejudicar a nova safra; para os pastores, o tempo de migrar com seus rebanhos para novas pastagens na lua cheia da primavera, tempo de viajar. Era festa que celebrava o ciclo da natureza. Com a notável experiência da libertação pela Mão poderosa do Deus de Abraão, Isaac e Jacó, a Páscoa se tornou uma celebração de um momento histórico, nunca esquecido e sempre inscrito no coração e nos costumes do Povo de Israel! Começava o Êxodo, o Caminho Libertador! Pela primeira vez na história humana, a divindade se punha do lado dos oprimidos, livrando-os da mão dos opressores!
O Faraó mesmo era uma espécie de deus entre os mortais. O culto aos mortos, o medo da morte eram decisivos entre os egípcios, inventor das perfeitas múmias e das pirâmides, preocupados com a conservação de algum tipo de vida. Também os deuses dos cananeus, dos caldeus, dos assírios, dos hititas eram personificações do poder das cidades, impérios e seus reis…
Mas o Deus de Abraão, Isaac, se manifesta, desde aquela noite antiga, sempre nova, como o Libertador dos humilhados! Sua Mãe iria cantar: “Derruba os poderosos de seus tronos e eleva os humildes!” (Lc 1,52)!
Todos lembramos a saída dos hebreus do Egito, sua corajosa travessia pelas águas, e estadia no deserto. Ali celebraram a Páscoa, a “Passagem” e, até hoje a celebram, como todos os cristãos, filhos de Israel também!
No Monte Sinai 1
Sinai, ou Horeb, é um pico rochoso, um dos muitos do deserto deste nome, localizado entre o Egito e Israel. Na verdade, não sabemos se o monte, há muitos séculos, considerado “o Sinai” foi de fato o Monte da Revelação do Nome de Deus e dos Dez Mandamentos. Os textos são vagos. E os estudiosos gostam de coisas bem “explicadinhas”! “Gebel Musa”, “a Montanha de Moisés”, como é chamado pelos locais, tem 2.300 m de altura. Ele e outros picos vermelhos de um planalto árido e rochoso formam um cenário imponente.
Lemos no Livro do Êxodo (19,1-2): “No terceiro mês, depois de sua partida da terra do Egito, naquele dia, os filhos de Israel chegaram ao deserto de Sinai… Israel levantou aí suas tendas, diante da Montanha”. Três meses só nos indicam que a estávamos num tempo abençoado, tempo do dom de Deus, a quem se referia o número três, número indivisível. Saídos do vale do Nilo, da região plana do Delta do Nilo, os israelitas devem ter ficado espantados diante daquelas alturas. No pé do monte, existe agora o velho mosteiro de Santa Catarina, onde o peregrino pode beber de água deliciosa e bem fresca tirada das entranhas da rocha. A meia altura, ele pode encher seu cantil ou sua garrafa, num poço, desde que tenha uma cordinha para mergulhar uns tantos metros.
O lugar devia ter inspirado sentimento religioso aos nômades daquele deserto, e era chamado “o Monte de Deus” (Ex 19,3). Moisés subiu e o nosso texto nos apresenta um belo hino (Ex 19,3-8), oráculo do Senhor, um maravilhoso recado de Deus misericordioso e amigo nosso. Vale à pena reler estas palavras cadenciadas, poéticas, que dirigem corações e mentes para a verdadeira finalidade destes capítulos: levar-nos a celebrar, sempre de novo, a Aliança do Senhor com Seu Povo!
O memorial do Sinai – 1
(Ex 19 a 23)
Quando, afinal, havia leitores suficientes, muito tempo depois de Moisés, os que redigiram o Livro do Êxodo narraram os acontecimentos fulgurantes do Sinai, tomando o esquema que lhes era familiar do culto da aliança, da celebração da memória daqueles eventos decisivos. Não temos, portanto, uma reportagem de uma testemunha ocular. Mas temos as consequências daqueles dias, a herança da noção de que Deus nos toma como aliados, de que nos considera livres, capazes de vida ética e nos concede a guia destes magníficos Dez Mandamentos.
Os Autores bíblicos usam dois nomes para a montanha, muda testemunha dos acontecimentos que têm marcado o rumo da história de Israel e até da humanidade: Horeb e Sinai, nome também da península e do deserto entre a África e Europa, laço dos continentes, ainda não rompido pelo Canal de Suez. O monte, que é tido como o lugar da revelação de Deus bom e justo, bem que pode ser a elevação de 2.300 m de atitude, mas os textos bíblicos não permitem confirmar com exatidão. Para os Autores das Escrituras o que importava não era precisão geográfica, mas a história sagrada que tinha feito daquele grupo de clãs um povo, e lhe tinha dado uma definição, um destino.
Os peritos, lendo com muito cuidado este admirável relato, nos fazem perceber que os versículos de 1 a 8 são um prólogo, uma introdução. A manifestação do Senhor ocupa os versículos de 9 a 25. Em seguida vêm os compromissos: os Dez Mandamentos (20,1 a17) e o Código da Aliança (20,22 a 23,19). Ele não tem o volume de um grande romance, nem de um grosso dicionário. No entanto, concentra toda a legislação de Israel, toda sua ética em poucas páginas. O efeito é impressionante: pouco a pouco os desdobramentos desta “semente” moral se vão fazendo sentir até nossos dias e prometem continuar influenciando o direito, a justiça, e os usos e costumes dos povos.
O memorial do Sinai – 2
(Ex 19,1-8)
Ninguém manda nada a ninguém se não imagina que a outra pessoa tem autonomia para obedecer. Robôs e computadores, facas e foices não obedecem. São coisas. Animais treinados até que obedecem, nos seus limites: “Totó, senta!”. Mas somente pessoas podem dizer “sim” ou “não”, cumprir ou não cumprir o mandado, acatar ou se rebelar, assim tomando decisões livres, boas ou más.
Se Deus manda, quer dizer que Ele nos fez capazes de assumir Sua bela, boa e sábia Vontade, ou se recusar. Se Jesus chama Judas Iscariotes de “amigo”, ele dá a Judas a liberdade de agir como amigo ou não.
O grande momento em que Israel tomou ampla consciência de que não era instrumento cego nas mãos do Criador, mas que o Criador lhe dava a vocação de ser seu colaborador na História da nossa Salvação, foi ali, no deserto do Sinai, “no terceiro mês (do ano lunar) do Êxodo”. Não tomemos o “terceiro” muito ao pé da letra. Números entre os antigos, eram letras, palavras, e costumavam indicar mais qualidades do que apenas quantidades, como é mais nosso costume. “Terceiro mês” pode muito bem significar: “na hora privilegiada da manifestação divina”.
Os primeiros versículos deste capítulo do Êxodo são uma revelação! Eles são marcados por duas frases iluminadoras: “Assim dirás aos filhos de Israel” (vv. 3 e 6). O trecho todo tem um andamento ritmado, que perdemos nas traduções. É uma canção, onde Deus nos diz: “Eu fiz”, “vós vistes”. O caminho da libertação não são passos perdidos pelas vastidões desertas, nem estes lugares secos eram a “casa” assinalada para Israel, como é, até hoje, para os beduínos.
A Tenda da Reunião
Muito antes que valesse a pena escrever, por falta de leitores, havia “o ensino”. Assim foram transmitidos Salmos, canções, memórias… Os conjuntos eram formados em torno de cultos familiares (como até hoje a Páscoa judaica) e lugares especiais (Mambré, Betel, Silo…). O culto integrava as memórias e os cânticos, lembravam as leis fundamentais, que derivavam das Dez Palavras ou Dez Mandamentos, e iam sendo aplicados, primeiro, a situações da vida de pastores nômades, depois de uma população que ia crescendo na Terra de Canaã e morando em casas.
Com certeza, Israel vivia assim, quando se começou a ser posto por escrito o que viria a ser nosso Livro do Êxodo. A Tenda de Reunião foi o modelo do Templo de Jerusalém, e a planta do Templo influiu na redação das descrições, conservadas da Tenda. Davi fez montar uma Tenda mais rica e ampla para guardar a Arca da Aliança.
A Tenda era o lugar onde Moisés acolhia as revelações do Senhor (Ex 33,7-11). Em Canaã, a Tenda foi armada em Silo, e era centro de unidade das tribos (Js 18,1; 19,51; 1Sm 2,21). Seu tesouro mais precioso era a Arca da Aliança, onde estavam guardadas as Tábuas de pedra com os Dez Mandamentos (2Sm 7,6).
A Tenda “reproduzia” a ideia da Tenda celeste, onde “habitava” o Senhor (ver Sl 104/105,2). Para os cristãos, entre outras coisas, interessa que a tenda era ornada com figuras de anjos (querubins), plantas e frutos, e até de touros. A proibição de reprodução em imagens de criaturas era compreendida apenas para fins de adoração, não de adorno (ver Ex 25,19-20.34; 28,34; 1Rs 7,23-29).
Um Deus “sem teto”
Do capítulo 35 à primeira parte do 39 do Livro do Êxodo é dedicado ao santuário, nos dias de Moisés e ainda por muitos séculos, até o reinado de Salomão, em forma de tenda. A ideia ficava de que o Deus Libertador os acompanhava dia a dia, acampando com eles, Sua Tenda da Reunião do Povo, no meio das tendas deles.
Claro! Havia a tentação de acreditar que se a Tenda ali estava, e dentro dela, a Arca da Aliança, não havia porque se preocupar com nada. Na verdade, estes capítulos finais do Livro do Êxodo seguem aos Dez Mandamentos e a numerosas prescrições que cuidavam de humanizar as relações entre as pessoas, com os bens materiais e até com os animais e alimentos (capítulos de 20 a 34). Esta legislação, retomada no Livro do Levítico, meditada e comentada através dos milênios, veio a desembocar nos monumentais Talmudes, obra prima do judaísmo, que constituem a espinha dorsal do comportamento moral do povo judeu até nossos dias.
Mais tarde, no tempo de Davi, o Profeta Natã iria recordar ao rei que Deus não precisa de casa, e é Ele quem estava dando “casa” a Davi (ver 2Sm 7). Salomão, o construtor do Primeiro Templo, vai se envaidecer: “Eu construí para Ti (ó Senhor) uma casa, em que habitas para sempre” (1Rs 8,13). Contudo, a sabedoria e a humildade parecem ter prevalecido na sua mente, pois se corrige adiante: “Mas será verdade que Deus habita com os homens nesta terra? Se os céus e os céus dos céus não podem Te conter (ó Senhor), muito menos esta casa que construí” (1Rs 8,27). Por isso, Salomão suplica: “Quando orarem neste lugar, escuta onde resides, no céu” (1Rs 8,30).
O Evangelista João (Jo 1,14), na Luz de Cristo, nos faz ver na pessoa do Verbo feito carne, a nova e definitiva tenda da Presença Divina. No texto grego transparece um jogo de palavras entre o termo hebraico “shekinah” – “presença” – e o verbo grego “skenoun” – “armar a tenda”, “acampar”. Jesus é a verdadeira Casa ou Tenda ou Templo de Deus entre nós (ver Jo 2,19-21) e nós sabemos que somos “Templos do Espírito Santo” (ver 1Cor 6,19).